terça-feira, 15 de novembro de 2011

Metodologia Fenomenológica

O método compreensivo de base fenomenológica tem o mérito de sistematizar dados de natureza qualitativa, permitindo compreender como os/as participantes vivem, percebem, pensam e sentem suas vivências, tomando como ponto de partida a expressão pessoal desse processo (BERNARDES, 1991). É entendido, dessa forma, como processo de coleta e análise de dados que considera as pessoas que existem no mundo e se relacionam umas com as outras, demandando que se conheça, pois, o seu contexto situacional e histórico. O método fenomenológico enfoca processos subjetivos na crença de que verdades essenciais acerca da realidade são baseadas na experiência vivida. O que interessa, pois, é a experiência vivida no mundo do dia-a-dia da pessoa.

Antes de apresentarmos o método, talvez seja conveniente fazer uma apresentação preliminar da fenomenologia, dada a complexidade do tema. Essa apresentação deverá cumprir dois requisitos: brevidade, a fim de não desviar excessivamente do interesse de pesquisa e tornar-se enfadonho; e simplicidade, para que o alcance da fenomenologia seja bem entendido, e não se acabe entrincheirando em jargões herméticos e esotéricos. Abordaremos, por um lado, a filosofia fenomenológica, e, por outro lado, o seu prolongamento nas ciências sociais.

Desse modo, quando falamos em fenomenologia, fazemos referência, por um lado, a filosofia de Edmund Husserl e, por outro lado, ao esforço empreendido seminalmente por Schutz para evidenciar a articulação possível entre a fenomenologia e as ciências sociais. Embora a fenomenologia tenha sofrido numerosos desdobramentos que possuem seus próprios méritos (Max Scheler, Martin Heidegger, Jean-Paul Sartre, Maurice Merleau-Pony, etc.), manteremos a discussão limitada, no que diz respeito a filosofia fenomenológica, ao que compreendemos ser o seu núcleo e ao que é relevante para o entendimento da sociologia fenomenológica de base hermenêutica. Não temos a pretensão de descrever integralmente a filosofia de Husserl, pois, além de nos faltar competência para tanto, não estamos realizando um trabalho sobre a sua filosofia. Nosso foco não é a contribuição específica de Husserl, mas apresentar os contornos gerais da fenomenologia, enquanto estudo da experiência humana e dos modos como as coisas se apresentam elas mesmas a nossa consciência. Trataremos de forma clara e concisa os conceitos relevantes da filosofia fenomenológica a partir de uma bibliografia secundária com a qual se abre a possibilidade de uma metodologia renovada nas ciências sociais de base compreensiva.

Em seguida, vortar-nos-emos a fenomenologia em sua vertente sociológica. A tarefa de distinguir uma sociologia propriamente fenomenológica não é fácil, ao contrário do que pode parecer a primeira vista. Com efeito, Kurt Wolff, citando Monica Morris, dá-nos uma noção da penetração de algumas premissas abrangentes que são comuns a diversas teorias sociológicas, que, em conjunto, podem ser categorizadas como orientadas por uma “abordagem subjetivista” em oposição a uma “abordagem objetivista”.

“Num esforço muito útil para ‘desmistificar o trabalho dos ‘sociólogos criativos’, Monica B. Morris reúne sob essa denominação os fenomenologistas (Husserls e Schutz), mas também Max Weber; os fenomenologistas existenciais (de Kierkegaard a Sartre, Merleau-Ponty, Heidegger, Scheler e Karls Jaspers); a “sociologia do absurdo” de Lyman e Scott; a Sociologia do Conhecimento de Berger e Luckmann; os sociólogos marxistas (Sartre, Enzo Paci, o Herbert Marcuse da primeira fase, e outros); os interacionistas simbólicos (sobretudo, George Herbert Mead, Herbert Blumer e Erving Goffman); e os etnomedologistas (Harold Garfinkel). O que têm em comum é uma abordagem ‘humanista-culturalista’, em oposição à abordagem ‘positivista-naturalista’” (WOLFF,1980: 677)

Uma seleção segundo critérios tão abstratos colocar-nos-ia certamente em uma situação desconfortável. Faremos um recorte nesse conjunto obedecendo a outro critério, mais ou menos arbitrário: sua conexão explícita com a filosofia fenomenológica ou com a fenomenologia de Schutz. O produto é o seguinte subconjunto: Schutz, Berger e Luckmann e Garfinkel. Eles ajudam a compreender a conexão possível entre a fenomenologia e as ciências sociais, trazendo, cada qual, sua contribuição para a investigação sociológica, quais sejam, a sociologia fenomenológica de Schutz, a sociologia do conhecimento de Berger e Luckmann, e, por fim, a etnometodologia de Garfinkel. Certamente há vários outros sociólogos que poderiam compor esse quadro. No entanto, acreditamos que esses são suficientes para esclarecer o sentido de uma sociologia fenomenológica.

1. Fenomenologia como movimento filosófico do século XX

O movimento fenomenológico foi iniciado entre o fim do século XIX e início do século XX. Edmund Husserl (1859-1938), matemático convertido mais tarde em filósofo, é, por direito, considerado o fundador da fenomenologia, sendo visto como um dos grandes clássicos da filosofia moderna. Influenciado pelas aulas de Franz Brentano (1838-1917), conservou do mestre a noção de intencionalidade, que se tornará um conceito fundamental da fenomenologia, conforme veremos adiante. Mesmo se revelando uma poderosa corrente na filosofia, a fenomenologia não se deixa entender facilmente.

Zilles, em sua introdução a um dos trabalhos de Husserl - A crise da humanidade européia e a filosofia -, faz uma ressalva intimidadora com relação à fenomenologia: “Husserl nunca foi nem será um filósofo popular. Sua obra é de mui difícil interpretação” (ZILLES, 1996:15). Não poderíamos estar mais de acordo. Uma grande dificuldade ao tentar tratar da fenomenologia de Husserl é que ele não nos legou uma obra de síntese geral. A sua fenomenologia encontra-se difundida em várias obras e compilações de aulas que não chegaram a ser publicadas (BELLO, 2006). Além disso, Husserl continuou a desenvolver o seu trabalho ao longo da vida. Como filósofo escrupuloso e obstinado pelo rigor, parecia nunca satisfeito com o que produzia, modificando, esclarecendo e aprofundando suas idéias. Como aponta Dartigues: “Escrevendo muito, publicando pouco, a tarefa imensa que se propusera não lhe parecia jamais estar senão esboçada e, portanto, sempre a ser retomada em sua inteireza, como se a filosofia jamais pudesse sair de seu começo” (DARTIGUES, 2008: 13).

Antes de tentarmos oferecer qualquer definição “fechada” de fenomenologia, acreditamos ser mais conveniente iniciarmos com o que se pretende realizar com a fenomenologia para não derraparmos em direção a qualquer interpretação transcendetalista ou idealista, que, no fundo, não teria muita importância para a pesquisa sociológica.

a) a fenomenologia como ciência de rigor

Com a fenomenologia, Husserl deseja estabelecer uma base segura para todas as ciências, além de fundar a filosofia como ciência de rigor, liberta de pressuposições. Segundo Zilles:

“Husserl colocou-se como tarefa de toda a sua vida, ao menos a partir de 1908, a fundamentação última de filosofia, decisiva para o futuro, na forma de uma ciência de rigor. A particularidade da filosofia, segundo ele, está no fato de ser uma disciplina específica entre outras, mas abrange ‘os problemas fundamentais e metódicos de todas as ciências positivas’ como ciência dos fundamentos” (ZILLES, 1996: 18)

Nesses objetivos estão embutidas as razões que justificam, ainda hoje diria Dartigues, o movimento fenomenológico: “É (...) possível afirmar (...) que a fenomenologia nasceu de uma crise e sem dúvida essa crise ainda é a nossa” (DARTIGUES, 2008:14). Com efeito, a fenomenologia busca responder a certo sentimento de crise da cultura européia: uma crise da filosofia, uma crise das ciências do homem e uma crise das ciências puras. Segundo Zilles: “Husserl responsabilizou os filósofos e os cientistas pela crise por terem deixado de servir a razão. Segundo ele, o século da ciência desviou-se da razão” (1996: 38).

As ciências perdiam prestígio na Europa. Segundo Moreira: “Enquanto o Novo Mundo acreditava na ciência para a cura de todos os males, na Europa o sentimento era de crise e algumas vezes de colapso da ciência” (2004: 80). Havia o sentimento de que as ciências não eram capazes de responder às questões verdadeiramente decisivas da existência do homem. O triunfo do conhecimento científico prometia, fundamentado na razão, promover as transformações necessárias para a construção de uma sociedade harmoniosa de acordo com a natureza das coisas. No entanto, esse conhecimento positivo começava a fazer água. Surgiam questionamentos quanto ao seu fundamento e alcance: “teriam as leis científicas validade universal?”; “não seriam as leis científicas puras convenções sem qualquer garantia de que numa observação posterior sejam invalidadas?”. Ademais, por sua crescente sofisticação, a ciência cada vez mais se afastava da compreensão do homem comum e de seus problemas.

Husserl diagnostica a crise das ciências do ponto de vista do seu sentido: em algum momento, a objetividade da ciência se corrompeu em objetivismo. Para ele, as ciências avançaram obliterando, deliberadamente, o sujeito, adotando uma postura ingênua diante dos objetos que estuda. Com efeito, as ciências positivas seguem como uma voz desencarnada. Seria como se os cientistas apenas emprestassem suas vozes para que os esquemas teóricos falassem por si próprios.

“Trata-se de problemas procedentes da ingenuidade, em virtude da qual a ciência objetivista toma o que ela chama o mundo objetivo como sendo o universo de todo o existente, sem considerar que a subjetividade criadora da ciência não pode ter seu lugar legítimo em nenhuma ciência objetiva. Aquele que é formado nas ciências naturais julga evidente que todos os fatores puramente subjetivos devem ser excluídos e que o método científico-natural determina, em termos objetivos, o que tem sua figuração nos modos subjetivos da representação” (HUSSERL, 1996: 80)

Esse objetivismo repercute como indiferença com relação aos problemas humanos, i.e., sobre o significado do mundo e sobre o que fazer no mundo. As ciências falham em fornecer sentido para homem, pois evitam tomar qualquer posição por imperativos metodológicos. Dartigues exprime bem essa indisposição na seguinte passagem:

“As ciências da natureza nada têm a dizer, já que elas, por método, tratam apenas dos corpos e excluem a subjetividade. Mas as próprias ciências do espírito, na medida em que quer ser objetivas, evitam toda tomada de posição normativa, contentando-se em constatar o que é, sem apreciá-lo e sem sugerir o que deve ser. Um mundo em que Auschwitz ia ser possível deu testemunho suficiente, pouco tempo após a morte de Husserl, da impotência e dos limites da racionalidade objetiva num século que, sendo o da ciência, deveria ser também o da razão” (DARTIGUES, 2008: 67).

Não há dúvidas de que a ciência promoveu maior controle da natureza pelo homem. Mas o fez ao preço de uma matematização da natureza e da vida. Essa postura da ciência diante do mundo emerge a partir do momento em que o homem, ao buscar resolver problemas práticos (medir longas distâncias, flutuação de objetos pesados, contabilidade e etc), desenvolve formas ideais puras (geométricas, físicas ou puramente matemáticas) que demonstram possuir propriedades próprias (por exemplo, a soma dos quadrados dos catetos é sempre igual ao quadrado a hipotenusa) calculáveis, i.e., que podem ser expressas em termos puramente matemáticos de forma exata. A matematização da natureza e da vida exprime a extrapolação desse princípio a partir do qual se supõe que a realidade concreta, suas qualidades e suas propriedades possam ser corretamente traduzidas em linguagem matemática.

Descobre-se a infinitude, primeiro em forma de idealização da grandeza, da massa, dos números, das figuras, das retas, dos pólos, das superfícies, etc. A natureza, o espaço, o tempo tornam-se idealmente prolongáveis e idealmente divisíveis ao infinito. Da agrimensura nasce a geometria, da arte dos números a aritmética, da mecânica cotidiana a mecânica matemática, etc. Agora a natureza e o mundo intuitivos se transformaram, sem que isso se faça uma hipótese explícita, num mundo matemático, o mundo das ciências matemáticas da natureza” (HUSSERL, 1996: 78)

Passa-se a crer que o mundo é regulado por determinações ocultas que só podem ser descobertas pelo método propriamente matemático, que, para serem aceitas, exigem validade universal, i.e., a partir do qual se possa dizer que derivam da natureza das coisas. O naturalismo é, portanto, co-extensivo ao objetivismo. É a forma específica com que se apresentam as ciências, que afirmam que a única realidade é a Natureza. Recoloca, desse modo, no plano do conhecimento, a separação entre o espírito e o mundo objetivo com forte repercussão nas ciências em geral e, especialmente, na psicologia. Quando transposto ao estudo da vida psíquica, o naturalismo conduz ao psicologismo, que significa, sucintamente, desconsiderar a especificidade dos objetivos das ciências do espírito, recorrendo ao método próprio das ciências da natureza para sua explicação. Segundo Husserl:

“Assim pode afirmar-se, de maneira geral: é um absurdo considerar a natureza do mundo circundante por si só alheio ao espírito e então querer fundamentar, em conseqüência, a ciência do espírito sobre a ciência da natureza e fazê-la, assim, pretensamente exata” (1996: 62).

A filosofia tampouco conseguia dar respostas satisfatórias. A filosofia do passado não poderia ser fundamento adequado para as ciências morais. Suas eternas divergências e desacordos revelam ser um ponto de partida inconveniente. Ademais, nenhuma filosofia pode depender apenas do gênio de algumas pessoas particulares. Era, pois, preciso se desfazer dessas premissas e especulações, tal como sugere Descartes, a fim de laçar-se sobre a investigação das coisas com fundamento e rigor, evitando-se, por um lado, adotar a perspectiva de que tudo no mundo é uma manifestação de idéias pré-existentes ou, por outro lado, de que todas as idéias são, propriamente falando, representações, mais ou menos imperfeitas, do que ocorre fora da consciência. Sokolowski chama a essa problemática de predicamento egocêntrico, por colocar como eixo do conhecimento uma consciência fechada sobre si mesma:

“Nas tradições cartesiana, hobbesiana e lockeana, que dominaram a nossa cultura, nos foi ensinado que quando estamos conscientes estamos principalmente conscientes do nós próprios ou de nossas próprias idéias. A consciência é tomada por ser como uma ilusão ou um gabinete fechado; a mente vem em uma caixa. Impressões e conceitos ocorrem nesse espaço fechado, nesse círculo de idéias e experiências, e a nossa consciência é direcionada a eles, não direcionadas diretamente às coisas ‘fora’” (SOKOLOWSKI, 2004: 18)

A fenomenologia pretende combater tanto o objetivismo como o psicologismo, assim como superar a oposição entre realismo e idealismo. Husserl critica o objetivismo ou a pretensão de que a “verdade” do mundo apenas se encontra naquilo que é mensurável no sistema teórico dos enunciados científicos. Para ele, as ciências se afastaram, pela matematização, do mundo da vida, substituindo-o pela natureza idealizada. Husserl não apenas constata a crise do conhecimento ocidental, mas apresenta a fenomenologia como método para superá-la. Com ela, pretende recolocar o mundo artificial e abstrato do objetivismo científico no mundo da vida. Citando o prefácio de Merleau-Ponty do seu livro "fenomenologia da percepção": “Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência com rigor, apreciar exatamente o seu sentido e seu alcance, precisamos primeiramente despertar essa experiência do mundo da qual ela é expressão segunda” (2006: 3).

Desse modo, a fenomenologia apresenta-se, em primeiro lugar, como ciência dos fundamentos, i.e., capaz de tornar evidente o vivido como base do conhecimento científico; e, ao mesmo tempo, apresenta-se como uma filosofia rigorosa, ou seja, livre dos pressupostos metafísicos que encarnavam as filosofias, procedendo mediante um método rigoroso de investigação, que iremos apresentar adiante.

b) “de volta às coisas mesmas” e a intencionalidade da consciência

A fim de estabelecer um método de fundamentação da ciência e de construção da filosofia como ciência rigorosa, Husserl lança a fenomenologia como “volta às coisas mesmas”. Isso não quer dizer simplesmente um retorno a qualquer tipo de empirismo ingênuo. Husserl tinha em mente algo muito diverso. Conforme interpretação de Merleau-Ponty:

“Retornar às coisas mesmas é retornar a esse mundo anterior ao conhecimento do qual o conhecimento sempre fala, e em relação ao qual toda determinação científica é abstrata, significativa e dependente, como a geometria com relação à paisagem – primeiramente aprendemos o que é uma floresta, um prado ou um riacho” (MERLEAU-PONTY, 2006:4)

A volta às coisas mesmas significa reconsiderar os fenômenos, entendidos, na fenomenologia, como aquilo que aparece à consciência como seu objeto intencional. Quando percebemos, lembramos, imaginamos ou sentimos (emoções) algo, estamos, na verdade, vivenciando. Se são vivências, então nós temos alguma consciência deles. Quando vivenciamos alguma coisa, damo-nos conta de que estamos diante de algo que se nos aparece: uma imagem (um relâmpago) ou um som (um trovão), que prenunciam uma tempestade; um sentimento que desejamos reprimir, como o ódio ou a inveja, ou cultivar, alegria ou amor; lembranças da infância; fantasmas que nos assombram em sonho ou recheiam as histórias que nos são contadas quando infantes, e etc. Esses objetos que se nos aparecem são o correlato da vivência da consciência; em outros termos, fenômenos.

É-nos revelado, então, que toda a consciência é consciência “de” alguma coisa. Segundo Sokolowski, contrariamente ao predicamento egocêntrico, a fenomenologia mostra que a mente é uma coisa pública, que age e manifesta a si mesma publicamente, não apenas dentro de seus próprios limites. Tudo é externo” (2004:21). Não apenas isso, mas também que tudo aquilo que é dado à consciência resulta da maneira como a consciência vivencia esse objeto, isto é, de como ele é visado pela consciência. A conclusão a que se pode chegar é que a consciência não é uma substância, não se deixa definir em si mesma, a não ser como uma atividade construída por atos (lembrar, perceber, imaginar, e etc.) a partir dos quais visa algo, isso quer dizer, em sua relação com o mundo (o mundo se coloca como horizonte de possibilidades sempre aberta, para o qual a consciência se dirige incessantemente). Diz-se, então, na fenomenologia, que a consciência é intencionalidade. Por outro lado, o objeto visado de uma determinada maneira pela consciência é intencionado. Isso quer dizer que ele está presente à consciência, mas não faz parte dela, e só existe na medida em que se relaciona com a consciência doadora de sentido. Zilles oferece síntese esclarecedora a esse respeito:

“A intencionalidade husserliana corresponde à correlação consciência-mundo, sujeito-objeto, mais originária do que o sujeito ou o objeto, pois esses só se definem nessa correlação. A intencionalidade fenomenológica é visada de consciência e produção de sentido que permite perceber os fenômenos humanos em seu teor vivido” (1996:28)

A análise intencional consiste em elucidar a relação existente entre a consciência doadora de sentido e o objeto intencionado, ou seja, aquilo que aparece. Em outras palavras, esclarece o laço existente entre os atos da consciência e o seu correlato, o objeto constituído por essa atividade. Não se trata, portanto, na fenomenologia, de procurar corresponder o mundo real à representação que dele se faz. Sua meta é demonstrar que “a todo conteúdo visado, a todo objeto (NOEMA), corresponde certa modalidade da consciência (NOESIS)” (CAPALBO. 1987: 14). Desse modo, conforme interpreta Urbano Zilles, a análise intencional significa:

“Por um lado, a intencionalidade significa que a consciência só existe como consciência de algo. Por outro, o objeto só pode ser definido em sua relação com a consciência por ser sempre objeto-para-um-sujeito. O ‘objeto’ só tem sentido para uma consciência que o visa. Assim as essências não existem fora do ato de consciência. Nesse sentido a fenomenologia husserliana busca a descrição dos atos intencionais da consciência e dos objetos por ela vivenciados, ou seja, pela análise noético-noemático” (ZILLES, 1996: 30).

À análise noético-noemático não interessa a manifestação concreta ou o dado. O que importa é estudar a significação das vivências da consciência. A fenomenologia é uma filosofia constitutiva: parte da análise das vivências intencionais da consciência para perceber como daí se constitui o sentido dos fenômenos. A questão do foco sobre o sentido e não sobre o fato coloca-se em sua amplitude quando se trata de objetos da percepção.

A percepção dá-se pelo preenchimento do objeto pretendido pelas sensações no curso em que com ele entramos em contato através dos atos da consciência. O percebido é o produto sintético da sucessão de sensações que dele possuímos. A percepção emerge como pólo sintético que transcende os momentos dos atos de percepção. Não se trata de síntese enquanto justaposição dos dados sensórios, mas como objeto transcendente, cujo sentido empresta unidade ao conjunto das sensações de cada momento diferente ou de cada aspecto percebido (ou mesmo ausente). A multiplicidade de dados da sensação é, então, reduzida a unidade de sentido do objeto dado à percepção, que é o objeto intencionado. A consciência é “de” algo, no sentido de que intenciona ou se dirige a um objeto, não meramente o somatório dos aspectos ou perfis dados a cada instante. De acordo com Sokolowski:

“Quando percebemos um objeto, não temos apenas um fluxo de perfis, uma série de impressões; em e por meio deles todos temos um e o mesmo objeto dado para nós, e a identidade do objeto é intencionada e é dada. Todos os perfis e todos os aspectos, todos os aparecimentos, são apreciados como sendo de uma mesma coisa. A identidade pertence ao que é dado na experiência e o reconhecimento da identidade pertence a estrutura intencional da experiência” (2004: 29)

Registre-se, portanto, uma clara aproximação com a psicologia da gestalt, percebendo que a forma se define por si mesmo e não a partir dos elementos que a compõem. A percepção dá-se de maneira organizada ou estruturada segundo uma forma que empresta unidade aos dados dos sentidos. Dartigues ratifica essa aproximação ao afirmar que:

“(...) o próprio Husserl chama forma (...) a unidade intencional pela qual, através do fluxo das sensações internas (...) que constituem a matéria sensível ou ‘sensual’ da percepção, eu viso o mesmo objeto distinto de mim e exterior a mim (...). A forma é, pois, para o próprio Husserl, um invariante, o invariante que, na diversidade e mudança das sensações pelas quais um objeto se dá para mim, me permite captar esse objeto como sendo sempre o mesmo” (2008: 39)[9]

Fazendo parte de uma mesma estrutura, os atos da consciência e o objeto intencionado organizam a percepção no fluxo contínuo em que se vão dando as sensações. A percepção do objeto, i.e., o noema, pode mudar na medida em que agregamos novos elementos, seja no campo (horizonte) interno do objeto ou no contexto em que se inscreve (horizonte externo). Podemos, por exemplo, passar da percepção de um copo d´água a percepção de um copo de cachaça bastando levar em consideração o cheiro; ou, se estamos em um bar, mais fácil que identifiquemos como cachaça o copo cheio de líquido transparente colocado diante de nós. Segundo Gorman, “(...) a noema pode indicar outros elementos não-percebidos de si mesmo (“o horizonte interior”), ou elementos não percebidos maiores do ambiente onde se encontra (“o horizonte exterior”) (1979:30).

Contudo, se as noemas são objetos intencionados de determinada maneira pelos atos da consciência, modificações nestes produzirão mudanças naquelas. Chauí, na apresentação que faz da vida e obra de Husserl, na coleção Pensadores da editora Nova Cultural, oferece exemplo simples e esclarecedor:

“Assim, por exemplo, um cubo pode ser visado pela percepção e, enquanto essência perceptiva, é distinto do cubo quando visado pela idéia geométrica de volume. Por outro lado, esse mesmo cubo pode ser visado por um ato de imaginação, encontrando-se, assim, uma terceira essência, distinta das anteriores” (2000:9)

Precisamos considerar uma última questão que tem conexões significativas com o trabalho sociológico de orientação fenomenológica. A fenomenologia destaca duas formas de intencionalidade: a intencionalidade operada no curso existência mundana e a intencionalidade voltada sobre os objetos da consciência e de seus atos.

A primeira é exercida no dia a dia, sem quase nos darmos conta, e que nos permite distinguir, para os fins práticos dos desafios corriqueiros, os fenômenos do mundo, tomando-os como possuindo uma existência própria e externa. A segunda é uma forma de intencionalidade reflexiva, pois se trata de uma tomada de consciência sobre aquilo que intencionamos e de seus atos constitutivos. É, portanto, uma intencionalidade de segundo grau que busca captar a coerência de sentido dos objetos intencionados. A primeira fornece, portanto, o fundamento sobre o qual se ergue o conhecimento que a procura traduzir em linguagem precisa, mas que não é capaz de lhe abarcar integralmente. Zilles apresenta esse ponto da seguinte maneira:

“(Husserl) distingue duas espécies de intencionalidade: a) uma intencionalidade temática que é o saber do objeto e saber deste saber sobre o objeto; b) uma intencionalidade operante, que é a visada do objeto em ato, ainda não refletida. A primeira tenta alcançar a segunda, que a precede, sem nunca consegui-lo. O saber consciente só se exerce sobre esse fundo de irreflexão nessa dimensão da vida que já é sentido porque visada de objeto, mas sentido ainda não formulado” (ZILLES, 1996: 29)

Enfim, abrem-se algumas considerações relevantes para nós. Em primeiro lugar, devemos considerar que os fenômenos não são meras representações do “objeto”. Não existem, para o fenomenólogo, duas realidades, uma fora da consciência e outra na consciência que precisam se ajustar. Segundo Dartigues: “Consciência e objeto não são (...) duas entidades separadas na natureza que se trataria, em seguida, de pôr em relação, mas consciência e objeto se definem respectivamente a partir dessa correlação que lhes é (...) co-original” (2008:23). Tampouco os fenômenos se restringem aos objetos físicos/materiais dados aos sentidos. Conforme dissemos, uma lembrança, um sentimento ou uma imagem criada pela fantasia são igualmente fenômenos. E, por fim e não menos importante para nós, os fenômenos são os dados primeiros de qualquer ciência. Nenhuma teoria científica nem os conceitos utilizados em seu sistema de proposições podem prescindir, em seu momento original, dessa experiência imediata dada pelos fenômenos. Essa é para nós a contribuição mais significativa da fenomenologia para o avanço do conhecimento científico, especialmente quando nos voltamos para as ciências humanas, restituindo o mundo da vida como ponto de partida das formulações teóricas conceituais.

c) da atitude natural à atitude fenomenológica

O entendimento do que vem a ser o método fenomenológico atravessa necessariamente a compreensão do que significa a distinção operada nessa tradição filosófica entre duas perspectivas diferentes: a atitude natural e a atitude fenomenológica. A passagem de uma perspectiva para outra indica, portanto, uma mudança de atitude do sujeito, significando uma transformação de sua disposição diante das coisas.

Falamos, então, de mudança de perspectiva ou de disposição, o que não é a mesma coisa do que adotar um ponto de vista diferente. Permanecendo numa postura ingênua, é possível variar o ponto de vista com relação às coisas sem, contudo, mudar sua disposição. Por exemplo, existem, certamente, diferenças entre o ponto de vista de um artista e de um geógrafo com relação à mesma paisagem (não nos cabe, no momento, registrar essas diferenças). No entanto, podemos afirmar que ambos os pontos de vista ordinariamente continuam presos a uma crença na exterioridade da paisagem percebida. Conforme veremos, a mudança da atitude natural ou ingênua para a atitude fenomenológica ou transcendental é muito mais profunda e abrangente. Para compreender as implicações dessa transição é preciso entender os termos envolvidos no processo.

No curso de nossas atividades corriqueiras, entramos em contato com uma diversidade de coisas: pegamos um ônibus para ir à universidade discutir com o professor e colegas uma determinada teoria. Reconhecemos em cada objeto dessa rotina uma identidade distinta e independente de nós: o ônibus, a universidade, professores, colegas e teoria. Todas essas coisas estão presentes no mundo do qual somos parte. E, dentro desse mundo, somos mais um elemento, entre tantos outros, alguns dos quais permanecerão fora de nosso campo de experiência durante toda a nossa existência (sei, por exemplo, que deve existir um país chamado China, embora nunca tenha ido lá nem tenha pretensão de ir) ou consistem em entidades abstratas ou teóricas, que pertencem certamente ao mundo, mas que se manifestam de forma diferente dos objetos físicos. A própria ciência conduz suas experiências mediante teste de hipóteses e de correlações mais ou menos confiáveis, sobre objetos que são identificados no mundo, que os cientistas sujeitam a alguma forma de medição. Esse tipo de consciência ingênua, em que os objetos do mundo são vistos como entidades externas e reais, é o que, na fenomenologia, chama-se de atitude natural. Dartigues define da seguinte maneira a atitude natural:

“A atitude natural, que é tanto a do cientista como a do homem na rua, consiste em pensar que o sujeito está no mundo como algo que o contém ou como uma coisa entre outras coisas, perdido sobre uma terra, sob um céu, entre objetos e outros seres vivos ou conscientes e, até mesmo entre idéias, que encontrou ‘já aí’ independente de si próprio” (2008: 24)

Assumir a atitude fenomenológica implica em adotar uma perspectiva radicalmente diferente com relação ao mundo. Ao contrário da atitude ingênua, que nos é dada espontaneamente, a atitude fenomenológica é um ato voluntário de desapego com relação à crença no mundo externo e que parece independente do sujeito. Isso não quer dizer que se está negando o mundo, apenas não se preocupa com o que seja “o real externo”. Essa é a postura do filósofo por excelência. É unicamente a partir da perspectiva fenomenológica, segundo o qual o mundo é apenas aquilo que é para a consciência, que se torna possível descrever analiticamente as intencionalidades particulares e seus correlatos intencionados. O mundo deixa de ser apenas exterioridade para se tornar um correlato dos processos da consciência doadora de sentido. Citando mais uma vez Dartigues:

“Ora, a análise intencional conduz (...) a distinguir entre sujeito e objeto ou consciência e mundo, uma correlação mais original que a dualidade sujeito-objeto e sua tradução em interiori-exterior, já que é no próprio interior da correlação que se opera a separação entre interior e exterior. Mas o acesso a essa dimensão primordial só é possível se a consciência efetua uma verdadeira conversão, isto é, se ela suspende sua crença na realidade do mundo exterior para se colocar, ela mesma, como consciência transcendental, condição de aparição desse mundo e doadora de seu sentido. Está aí uma nova atitude que Husserl chamará atitude fenomenológica” (2008: 25)

Por essa “virada” de postura é que se torna possível a investigação fenomenológica. Veremos em seguida como é realizada a mudança de atitude fenomenológica a fim de tomar como objeto de investigação o irredutível da experiência dada à consciência.

d) Epoqué, redução transcendental e redução eidética

A redução fenomenológica engloba a epoqué, a redução transcendental e a redução eidética. Embora constituam as etapas mais importantes do pensamento e do método de Husserl, devemos admitir que não são as mais claras. Esses momentos apresentam-se às vezes indistintamente, segundo Moreira (2002) e Holanda (2001), tornando mais desafiador seu entendimento. O primeiro passo, para termos clareza da importância da Redução Fenomenológica, é, portanto, fazer uma apreciação de cada um desses momentos de forma distinta.

A fenomenologia, conforme já dissemos, propõe-se como tarefa analisar as vivências intencionais da consciência para aí perceber o sentido dos fenômenos. Na atitude natural, a consciência está posta diante de um mundo enquanto realidade que existe sempre ou está sempre aí, objetiva e independente do sujeito pensante. Na fenomenologia, para se alcançar a atitude fenomenológica, é preciso nos separarmos dessa tese natural, colocando entre parênteses não só as doutrinas sobre a realidade, mas também a própria realidade, para que seja possível, então, depurar o sentido do fenômeno na consciência tal como ele aparece. Na epoqué, o filósofo não duvida da realidade do mundo, mas essa existência deve ser colocada entre parênteses, exatamente porque essa realidade não é o que verdadeiramente interessa a fenomenologia. O seu interesse primeiro é a forma pela qual o conhecimento do mundo se revela para o sujeito. A fenomenologia pretende ser a ciência das essências e não dos fatos. Pela epoqué, suspende-se, portanto, a crença no mundo externo como tal, a fim de que possa emergir aquilo que é dado, isto é, aquilo que aparece à consciência. Para Zilles, “A epoqué (...) deve consistir (...) em nos abstermos por completo de julgar acerca das doutrinas de qualquer filosofia anterior e em levar a cabo todas as nossas descrições no âmbito dessa abstenção” (1996: 20). Com a epoqué, segundo Capalbo, “Temos assim a redução eidética que nos permite distinguir fatos e essências. Eu coloco entre parênteses o fato, deixando surgir a idéia, o sentido. O eidos do fato, a sua essência, a sua significação, se revela em situação” (1987:16).

Por sua vez, a redução transcendental procura depurar o sujeito de todas suas contingências históricas a fim de revelar a consciência pura e seus atos, a partir dos quais o mundo ganha sentido. Alcança-se, desse modo, a vivência da consciência como a raiz de toda a significação. O resultado da redução transcendental é, portanto, o Eu absoluto, não mais o eu empírico (retomaremos adiante a questão do eu transcendental), a fim de evidenciar a própria atividade da consciência e uma base segura para a realização da filosofia com validade universal. Segundo Capalbo: “A colocação entre parênteses será não só relativa à tese do mundo como uma realidade em sim, mas também relativa ao meu eu empírico, à minha subjetividade ligada às minhas experiências existenciais, ao meu corpo, com tais sentimentos, com tal inteligência, etc” (1987: 17). Para Gorman a redução transcendental “é chamada ‘transcendental’ porque descobre o ego puro para o qual o mundo tem significado, um ego que transcende o mundo significativo por constituir o significado que ele possui na consciência do sujeito” (1979: 34).

A redução fenomenológica não pára por aí. A redução eidética começa com a observação de que apreender a consciência não é suficiente. É preciso ter acesso às essências que permitem a própria percepção do fenômeno na consciência. A redução eidética é maneira pela qual o filósofo transcende o conhecimento dos objetos individuais e concretos para alcançar a sua essência, que permite distinguir e classificar os fatos. Ou seja, tornar conhecida a estrutura essencial e invariável do fenômeno, separando de tudo que é acidental ou contingente. O eidos é, pois, a estrutura necessária e invariável da coisa. É preciso depurar o fenômeno de tudo aquilo que não é necessário, ou seja, reduzir, daí redução eidética. Segundo Zilles:

“A essência se definirá, segundo Husserl, pela análise mental como uma consciência da impossibilidade, ou seja, como aquilo que é impossível pensar de outro modo. Identifica-se este invariante através das diferenças, definindo a essência dos objetos dessa espécie, ou seja, definindo aquilo sem o qual seria impensável. Esse procedimento Husserl chamou de variação eidítica” (1996: 32).

O instrumento adequado, pois, para captar a essência do fenômeno, depurando-o dos seus elementos acidentais, será a variação eidética ou variação imaginativa livre. Moreira descreve esse procedimento da seguinte forma:

“Começa-se sempre com um objeto concreto, o qual é variado imaginativamente em diferentes aspectos. As limitações dessas variações são o efetivamente dado e o próprio eidos, a própria essência. As séries de variações superpõem-se e o aspecto no qual se superpõem é a essência. A estrutura essencial é atingida, pois, quando nos movemos da evidência na esfera perceptual à evidencia na esfera imaginativa” (2002: 90).

A variação imaginativa livre, que permite o reconhecimento da essência do fenômeno, procede negativamente. Por meio da imaginação, vão-se eliminando os elementos da coisa antes que ela deixe de ser o que é. Se a característica pode ser eliminada sem que comprometa o objeto, sabemos que ela não pertence a sua essência. As características que não podemos descartar sem comprometer o próprio fenômeno é parte de sua essência, e deve ser preservado. Dessa forma, atingimos uma descrição necessária do fenômeno ou a sua essência.

e) ego transcendental e inter-subjetividade transcendental

Conforme dissemos antes, o resíduo da redução transcendental é o sujeito (ego) transcendental. Segundo Capalbo, “a suspensão da tese do mundo e da subjetividade empírica deixa como resíduo um Eu puro ou transcendental” (1987: 17). Sua relevância para a fenomenologia é fornecer uma base segura para a reflexão fenomenológica. Trata-se, pois, do resultado de um artifício metodológico cuja importância reside na necessidade de encontrar um fundamento seguro de validade universal para o mundo constituído por uma consciência doadora de sentido. Elimina-se desse modo a subjetividade matizada por experiências singulares e que se dispõe diante do mundo de maneira particular, reconhecendo uma dimensão pré-pessoal universal cuja atividade cognoscitiva ganha contornos de necessidade. Em outras palavras, de acordo com Gorman, “O problema de Husserl se origina em seus próprios critérios de que nada é conhecido com certeza, a menos que seja constituído, como objeto de cognição, pelo ego transcendental” (1979: 35). Para Merleau-Ponty, que é crítico desse tipo de abordagem de uma fenomenologia idealista, no sentido de reduzir o mundo à atividade da consciência:

“(...) não existe questão à qual ele (Husserl) não tenha mais freqüentemente retomado, já que a ‘problemática da redução’ ocupa nos inéditos um lugar importante. Durante muito tempo, e até em textos recentes, a redução era apresentada como um retorno a uma consciência transcendental diante da qual o mundo se desdobra em uma transparência absoluta, animado do começo ao fim por uma série de percepções que caberia ao filósofo reconstituir a partir de seu resultado. (...) Seria portanto a apreensão de uma certa hylé como significando um fenômeno de grau superior (...), a operação ativa de significação, que definiria a consciência, e o mundo não seria nada de distinto da ‘significação do mundo’, a redução fenomenológica seria idealista, no sentido de um idealismo transcendental que trata o mundo como unidade de valor indiviso entre Paulo e Pedro, na qual suas perspectivas se recobrem, e que faz a ‘consciência de Pedro’ e a ‘consciência de Paulo’ se comunicarem porque a percepção do mundo ‘por Pedro’ não é feito de Pedro, nem a percepção de mundo ‘por Paulo’ um feito de Paulo, mas em cada um deles um feito de consciências pré-pessoais cuja comunicação não apresenta problema, sendo exigida pela própria definição da consciência, do sentido ou da verdade” (2006:6-7).

Por outro lado, podemos falar também da constituição comum do mundo. É a partir da referência a experiência que se tem de si próprio que o sujeito se lança a experiência do outro. Percebe no outro as mesmas potencialidades que existe em si mesmo: pensa-se em termos de outro eu que possui as mesmas características básicas de si mesmo. No entanto, esse outro deve ser um eu diferente de si mesmo, cuja subjetividade permanece, por essa razão, estranha. Citando Zilles, “Na experiência do meu corpo radica a experiência que tenho de corpos alheios e, por sua mediação, tenho a experiência da subjetividade alheia, de uma segunda vida transcendental distinta da minha” (1996:34). O mesmo tem a consciência de que essa experiência é recíproca. A raiz da intersubjetividade transcendental repousa precisamente sobre essa vivência da alteridade recíproca comum, que constitui, em conjunto, o mundo como comunidade. Em outras palavras, a significação do mundo não deve ser encarada como obra de um só ego subjetivo, mas de uma pluralidade de egos, visto que é intencionado por vários egos, inaugurando-se, assim, uma relação intersubjetiva na qual a significação é atribuição de uma comunidade de pessoas. Segundo Dartigues: “A constituição do mundo não é jamais (...) um fenômeno subjetivo, mas um fenômeno intersubjetivo, o que conduzirá Husserl a ampliar a subjetividade transcendental àquilo que denomina uma intersubjetividade transcendental” (2008: 58).

f) fenomenologia compreensiva

A fenomenologia oferece ao pesquisador um referencial importante para o desenvolvimento de uma abordagem compreensiva nas ciências humanas. Visualizamos duas formas articuladas a partir das quais esse movimento moderno da filosofia pode ser empregado como um fundamento rico para uma metodologia compreensiva ao restituir um lugar privilegiado para a dimensão subjetiva nas ciências, especificamente nas ciências humanas. O foco da fenomenologia compreensiva volta-se, em nossa visão, por um lado, para a intencionalidade, como visada da consciência e produção de sentidos, e, por outro lado, para a dimensão do vivido pré-reflexivo, isto é, para o plano da experiência imediata cotidiana, o qual o pesquisador procura elevar ao nível da racionalidade conceitual, ou seja, da reflexividade.

A compreensão envolve a captação de sentido, que é, em outros termos, aquilo que foi a intenção do agente quando realizou algo. Conforme lembra Dartigues, “(...) a intenção está no fundamento do compreender tal como o supõem as investigações que se recomendam da fenomenologia nas ciências humanas” (2008: 47). Podemos afirmar que uma obra de arte ou literária revelam a intenção de seu autor, pois procuram transmitir algum significado que transborda a sua mera materialidade. Caberia ao pesquisador, consciente do caráter significante da obra, desvendar o seu sentido, apenas insinuado, remetendo ao meio humano e ao autor que lhe imprime uma intenção. De modo análogo, os arqueólogos têm interesse renovado sobre instrumentos feitos de pedras lascadas ou metais rudimentarmente fundidos que se prestam a realizar determinadas tarefas e que são manuseados de formas específicas. Esses objetos atestam uma intenção, compreendido como propósito, e também um entendimento comum, compartilhado por determinado grupo em determinada época.

Ora, se assim o é com relação aos objetos produzidos pelos homens, não menos significativos são os comportamentos humanos, que remetem, de forma mais imediata, a intenção dos próprios sujeitos. Segundo Dartgues, “Por mais afastados ou diferentes de mim que sejam esses sujeitos, considero, pelo fato de serem humanos, logo racionais, que o seu comportamento pode ser compreendido porque exprime uma intenção que me é acessível” (2008:48). O comportamento humano difere, portanto, de um movimento físico, pois ele é animado por uma intenção ou motivo. Compreender significa, então, resgatar o sentido, o motivo ou a intenção interior do sujeito que se manifesta em seu comportamento.

Contudo, as intenções profundas das ações ou atitudes de outra pessoa não são sempre evidentes. Com efeito, muitas vezes estamos enganados a respeito de quais eram as “verdadeiras” intenções de alguém quando ele agiu de determinada maneira que não esperávamos. Ora, mas essa é uma forma muito explícita e natural de engano com relação às intenções de alguém. Na realidade, não poderemos ter certeza absoluta (máxima evidência ou evidência apodítica) sobre o que realmente pretendia ou motivava alguém a agir de qualquer maneira determinada. Inclusive é admissível concluir que alguém poderia enganar-se quanto as suas próprias intenções ou motivações profundas (matéria sobre a qual se desdobrou toda uma ciência – a psicanálise; ou que poderia muito bem se expressar sob o conceito marxista de “falsa consciência”). Captar a intenção profunda de outro ou mesmo de si próprio dá-se sob uma cortina de fumaça – o sentido aparente dissimula um sentido mais profundo, colocado num plano de intencionalidades irrefletidas.

Acontece que, contrariamente ao que se pode encontrar em certa leitura idealista da fenomenologia, os sujeitos humanos não são espíritos puros e intemporais. O seu comportamento desdobra-se sobre um fundo irrefletido que lhe escapa, mas que, em certo sentido, determina a sua intenção antes mesmo de poder a formular em sua consciência. Segundo Dartigues:“(...) a vida psíquica antecede e excede a reflexão consciente, ela comporta formações antigas que lhe escapam e determinam a sua visada antes que ela tenha podido esclarecê-las, refletindo-as” (2008:49). Isso significa que o sujeito não está livre de um mundo compartilhado já constituído que existe antes dele, antes que possa formular de forma consciente, i.e., refletida, sua própria existência. Podemos deduzir isso a partir do que nos diz Merleau-Ponty sobre a própria redução fenomenológica:

“Se fôssemos espírito absoluto, a redução não seria problemática. Mas porque, ao contrário, nós estamos no mundo, já que mesmo nossas reflexões têm lugar no fluxo temporal que elas procuram captar, não existe pensamento que abarque todo nosso pensamento”. E continua: “(...) a reflexão radical é consciência de sua própria dependência em relação a uma vida irrefletida que é a sua condição inicial, constante e final. Longe de ser, como se acreditou, a fórmula de uma filosofia idealista, a redução fenomenológica é a fórmula de uma filosofia existencial (...)” (2006:10-11).

O conhecimento da intenção de outro sujeito, o que caracteriza a compreensão, é do mesmo modo problemático, pois não se trata, no caso real, de uma comunidade de espíritos transcendentes e idênticos entre si, compartilhando um mundo intemporal e transparente. O outro não é para o sujeito do conhecimento apenas a projeção de seu próprio estado psíquico. A fenomenologia compreensiva só faz sentido se guardar certa distância entre as subjetividades dos sujeitos, que não podem ser reduzidas umas às outras. Citando Dartigues: “Mas que seja eu por essência aberto aos outros enquanto outros significa também que me distingo dos outros, que a compreensão de outrem é feita também da distância que dele me separa (...)” (2008:61). Essa distância pode significar uma separação mínima entre dois irmãos, que, mesmo possuindo uma “criação” semelhante, guardam, contudo, personalidades próprias (e vivências próprias), que não podem ser reduzidas uma à outra. Mas pode significar especialmente distâncias espaciais e temporais importantes: como a que nos separam de antepassados de tempos distantes, ou como a de contemporâneos que vivem do outro lado do mundo.

A fenomenologia compreensiva buscará, portanto, interpretar essa existência pré-dada, esse pensamento situado do outro. Sua tarefa será tentar colocar de modo claro as estruturas dessa vivência, buscar captar sua significação, e assim revelar o sentido profundo do comportamento. A fenomenologia só poderá proceder com rigor caso reconheça que a compreensão envolve um apreender atual que se dá na historicidade do próprio pesquisador. Desse modo, o sentido do fenômeno não corresponde a uma intencionalidade intemporal, mas emerge, no plano da reflexão, como unidade de experiências e consciências reais, como uma síntese ou confrontação de significações estranhas, a partir do qual o pesquisador é capaz de alcançar a compreensão de experiências que, a rigor, poderá nunca ter vivido, e com a qual é capaz de entender a significação do comportamento do outro. O pesquisador elava ao nível da reflexibilidade o vivido da consciência mundana a fim revelar sua intencionalidade profunda.

2) Fenomenologia e Relações Sociais

a) Schutz

Alfred Schutz deu um passo fundamental ao discutir as implicações de se adotar uma perspectiva fenomenológica para as ciências sociais. No entanto, sua abordagem da fenomenologia é bastante peculiar. Schutz parte do questionamento de conceitos fundamentais da sociologia weberiana – a noção de sentido subjetivo e a construção dos tipos ideais – em direção a sua solução em uma leitura bastante singular da fenomenologia de Husserl (WAGNER, 1979; GORMAN, 1979).

No que diz respeito a sua leitura da fenomenologia, Schutz dá certa “concreção teórica” aos sujeitos na sociologia que ele concebe, que não é apenas compreensiva, mas, sobretudo, pragmática. O que queremos dizer com isso? Schutz pensa o seu esquema teórico fenomenológico a partir da extrapolação dos fundamentos iniciais e das conseqüências de qualquer existência cognitiva real de forma especulativa, isto é, fundamentado em certos princípios extraídos da filosofia pragmática. Se Schutz partiu das dificuldades inerentes a obra de Weber, sua teoria consiste em uma determinada interpretação da fenomenologia matizada por elementos do pragmatismo: o sujeito que Schutz elabora é o sujeito pragmático, isto é, o pensamento e as interpretações desenvolvidos por qualquer sujeito desdobram-se sobre um pano de fundo de planos e metas, interesses e motivações, mais ou menos delineados ou mutantes, mas sempre presentes e estruturantes.

O ponto de partida da fenomenologia de Schutz é o mundo da vida, que consiste no mundo cotidiano do sujeito. Toda a interpretação exercida por um indivíduo, na perspectiva de Schutz, tem como pressuposto um mundo compartilhado com outros, já constituído, organizado e significativo. O mundo da vida é, portanto, a um só tempo, o ponto de partida e o objeto de nosso entendimento e ação. Segundo Schutz:

“’O mundo da vida cotidiana’ significará o mundo intersubjetivo que existia muito antes muito antes do nosso nascimento, vivenciado e interpretado por outros, nossos predecessores, como um mundo organizado. Ele agora se dá à nossa experiência e interpretação. Toda interpretação desse mundo se baseia num estoque de experiências anteriores dele, as nossas próprias experiências e aquelas que nos são transmitidas por nossos pais e professores, as quais, na forma de ‘conhecimento à mão’, funcionam como código de referência” (In WAGNER, 1979:72)

Na atitude natural, o sujeito não duvida da existência das coisas a sua volta, sejam eles objetos naturais ou culturais: objetos qualificados e delimitados, com os quais entramos em contato. Isso significa que somos capazes de distinguir os diferentes fenômenos no mundo como se possuíssem suas próprias características intrínsecas identificáveis, assumindo que também sejam reconhecidos pelos demais contemporâneos. Se, por qualquer razão, chegamos a questionar o significado de alguma coisa, não muda o caráter de que, em geral, a objetividade, isto é, a exterioridade do mundo, é sempre pressuposta. No curso da atitude natural, o sujeito evita, portanto, questionamentos mais profundos. O mundo é dado ao sujeito. E, com ele, as interpretações, legadas pelos nossos predecessores, transmitidas pelos pais, professores e outros que vieram antes.

Mas, se o mundo legado é o pressuposto geral da atividade cognitiva do sujeito, esse mundo necessita também ser interpretado por ele, que busca definir seu lugar e papel entre os demais contemporâneos a partir de sua própria situação biográfica, isto é, a partir de todas as suas posses disponíveis de conhecimento naquele momento e dos propósitos práticos que o animam. Para dar conta dessa questão, Schutz lança mão de dois recursos conceituais de fundamental importância para seu esquema teórico: “estoque de conhecimento” e “sistema de relevância”.

O conhecimento de senso comum consiste em receitas e interpretações úteis aprendidas e sedimentadas no curso das vivências do sujeito a partir do qual pode se referir às experiências passadas e presentes, ou mesmo antecipar desdobramentos futuros. Em seu conjunto, forma o estoque de conhecimento à mão, que não constitui um todo homogêneo, mas varia desde um conhecimento mais ou menos rigoroso a um conhecimento vago e impreciso. Segundo Schutz:

“Há um núcleo relativamente pequeno de conhecimento que é claro, distinto e consistente. Esse núcleo é cercado de zonas de gradação variada de vagueza, obscuridade e ambigüidade. A essas se seguem zonas de preconceitos, crendices cegas, puras suposições, mera adivinhação, zonas de coisas nas quais basta ‘acreditar’. E, finalmente, existem regiões que ignoramos completamente...” (In. WAGNER, 1979: 74)

O estoque de conhecimento de uma pessoa não é apenas expansível, agregando novos conhecimentos aos antigos, como também pode se alterar em termos de sua estrutura, pois cada nova experiência é interpretada com base na identificação realizada pelo sujeito com experiências anteriores. Segundo Schutz: “(...) é o estoque de conhecimento à mão que serve de código de interpretação da experiência atual em curso” (In WAGNER, 1979: 75).

No entanto, em qualquer determinado momento, o estoque de conhecimento de uma pessoa é estruturado com referência a um sistema de interesses práticos ou teóricos (quando se refere ao conhecimento científico). Isso quer dizer que, partindo dos planos e metas do ator, o estoque de conhecimento é divido em regiões de relevância, definidos segundo zonas de relevância. Isso quer dizer que nossos interesses e projetos desempenham o papel de selecionar aquilo que é importante conhecer de forma mais profunda, clara e definida e o que basta ser tomado apenas como pressuposto para nossos fins práticos. Segundo Schutz: “É, portanto, nosso interesse à mão que motiva todo o nosso pensar, projetar e agir e que, portanto, estabelece os problemas a serem solucionados pelo pensamento e os objetos a serem atingidos pelas nossas ações” (In. WAGNER, 1979: 110). O interesse à mão divide o estoque de conhecimento em diferentes zonas de relevância.

É preciso reconhecer, contudo, que o sistema formado por nossos interesses (o sistema de relevância) não é homogêneo. Em primeiro lugar, Schutz afirma que é mais pertinente considerar um sistema hierarquizado de interesses: ele não é necessariamente coerente e está sujeito a mudanças. Com efeito, Schutz reconhece que tendemos a defender interesses que se contradizem segundo os vários papeis que desempenhamos no dia a dia. E, diante disso, a cada situação, temos que decidir qual interesse será prioritário a fim de definir o que merece mais atenção.

Em segundo lugar, atento à diversidade de sentidos que a noção de interesses evoca, Schutz define dois tipos de sistemas de relevância: “sistema intrínseco de relevância” e “sistema imposto de relevância”. O primeiro decorre do interesse entendido como aquilo que nos interessa ou chama atenção. É uma escolha voluntária do indivíduo, que pode transitar de um interesse para outro sem comprometer seriamente seu bem-estar. Contudo, uma vez escolhido, determinará o sistema de relevâncias do sujeito: “De fato, somos livres para decidir em que estamos interessados, mas esse interesse, uma vez estabelecido, determina o sistema de relevâncias intrínsecas com relação ao interesse escolhido” (SCHUTZ, In WAGNER, 1979: 113).

O segundo decorre das circunstâncias, que obrigam certo empenho do sujeito, pois coloca em questão seu bem-estar. É claro que esse tipo de interesse pode vir a se tornar algo que desperta uma autêntica curiosidade do indivíduo; Schutz reconhece isso perfeitamente. No entanto, mesmo que se faça essa transição, não se muda o caráter externo de sua determinação, seja ela eventual ou estrutural. Não obstante, Schutz parece não perceber a importância sociológica contida nessa última definição, voltando-se, prioritariamente, às escolhas voluntárias de interesses, simplesmente “Porque elas (as relevâncias impostas) nos são impostas, permanecem obscuras e bastante incompreensíveis” (SCHUTZ, In. WAGNER, 1979: 113).

Segundo Schutz, os sujeitos tomam conhecimento do mundo de forma tipificada. Isso quer dizer que os seres humanos vivenciam o mundo externo como se possuísse formas características de aparecer. Mesmo que entremos em contato com um animal particular que nunca vimos antes, podemos o reconhecer como um cachorro normal, que se manifesta de acordo com aquilo que podemos esperar de todo outro animal semelhante. Aquilo que já foi apreendido em sua tipicidade traz consigo um horizonte de possibilidades, que mesmo que não tenham sido imediatamente vivenciadas, imaginamos que o podem ser. Posso não ter visto os dentes do cachorro que está diante de mim, mas posso contar que, se o molestar, corro o risco de confirmar isso de maneira muito desagradável.

Igualmente, aquilo que percebemos de maneira atual num objeto pode ser transferido para outro semelhante, do mesmo tipo, sujeito, sempre, a verificação posterior. Segundo Schutz: “toda idéia empírica do geral tem o caráter de um conceito aberto a retificação ou corroboração de experiências por vir” (In. WAGNER, 1979: 116).

Na vida social, essas tipificações são transmitidas pelos predecessores – constituem, pois, a herança cultural de um grupo determinado. Eles formam um quadro de referência, que, embora possuam certas inconsistências e sejam relativamente obscuras, são a base de interpretação do mundo, seja o mundo físico ou o sociocultural (normas, papeis, relacionamentos típicos). Elas conformam um tipo de conhecimento distinto do científico e, em certo sentido, mais primitivo.

“Assim, as tipificações ao nível do senso comum – em oposição às tipificações feitas pelos cientistas e, especialmente, cientista social – emergem, na experiência cotidiana do mundo, como pressupostos, sem qualquer formulação de julgamentos ou proposições claras, com sujeito e predicados lógicos. Eles pertencem, usando um termo fenomenológico, ao pensamento pré-predicativo” (SCHUTZ, In WAGNER, 1979: 118)

Quanto à abordagem fenomenológica, o argumento de Schutz é de que o ponto de vista subjetivo (que pertence ao sujeito) deve ser preferido nas ciências sociais. Esse argumento fica mais claro quando observamos sua crítica ao behaviorismo, que se constitui exatamente numa teoria do comportamento em que não se leva em conta a subjetividade do ator. É behaviorista, portanto, não apenas uma linha particular de pesquisa, mas toda uma gama de atividades científicas que se debruçam sobre o comportamento humano, a partir do qual constrói todo um aparato conceitual e teórico, mas que o faz sem nunca ter que considerar seriamente aquilo que pensa e sente o ator na situação. Sua crítica é a de que os behavioristas, ao negligenciarem irrealisticamente a dimensão subjetiva do ator, impõe a esses seus esquemas teóricos, construídos exclusivamente a partir do sistema de relevância científico, dos problemas teóricos por eles escolhidos. Para Schutz, esses cientistas sociais limitam-se, pois, a dizer o que o mundo social significa para eles, negligenciando o que significa para os atores dentro do mundo social. O que Schutz propõe, em lugar disso, é que os conceitos ou construtos das ciências sociais devam partir do conhecimento produzido pelo senso comum da vida cotidiana: “Os construtos envolvidos na experiência do senso comum do mundo intersubjetivo na vida diária, que são chamados de Verstehem, são construtos de primeiro grau, sobre os quais têm de ser erigidos os construtos do segundo grau das ciências sociais” (In WAGNER, 1979: 270).

A fim de realizar a passagem dos construtos de primeiro grau, do senso comum, aos construtos de segundo grau, científicos, é necessário observar alguns passos. Schutz inicia considerando primeiramente a postura do pesquisador. Esse assume uma “atitude desinteressada” diante do mundo da vida. O pesquisador se desliga da situação biográfica dentro do mundo social. Segundo Schutz, “o que é tido como pressuposto na situação biográfica da vida diária pode tornar-se questionável para o cientista, e vice-versa; o que parece ser da maior relevância num nível pode tornar-se inteiramente irrelevante no outro” (In. WANGNER, 1979: 271). O “estar no mundo” é substituído por um “estar numa situação científica”, em que o problema científico é que determina o que é ou não é relevante, e também como serão realizados os construtos. Daí que qualquer modificação no problema de pesquisa redundará em alterações nas estruturas de relevância e, por conseguinte, nos construtos.

O método para se chegar à construção de tipos que seja adequado ao conhecimento científico e que possa responder aos problemas de pesquisa deve, para Schutz, obedecer aos seguintes postulados: 1) coerência lógica – sua consistência e coerência lógica, i.e., a ausência de contradições, é um dos aspectos mais importantes para se fazer a distinção entre os construtos dos cientistas e os construtos realizados pelas pessoas na vida cotidiana, enfim, pelo pensamento prático dos agentes; 2) interpretação subjetiva – o cientista deve construir o modelo de uma mente cuja atividade explique os fatos observados; 3) adequação – o ator do mundo da vida deve ser capaz de compreender um ato cometido no mundo da vida da maneira indicada pelo construto. Observando-se esses postulados, para Schutz, seria possível construir tipologias que superassem as dificuldades inerentes das tipologias construídas pelo senso comum, quanto a clareza e rigor; garantiria também que esses construtos estariam ligados aos construtos do ator no mundo da vida e diria respeito a eles e que atendessem às necessidades da investigação científica, isto é, ao problema a ser investigado.

b) Berger e Luckmann

A sociologia do conhecimento de Berger e Luckmann procura dar conta de como a realidade social é constituída. Isso que dizer que a sociologia do conhecimento, levando em consideração a multiplicidade de conhecimentos, deve analisar os processos através dos quais um corpo de conhecimento é socialmente estabelecido como realidade, defendendo, desse modo, um campo muito mais amplo de investigações sociológicas do conhecimento, que quase se confunde com a própria sociologia.

“Nosso ponto de vista (...) é que a sociologia do conhecimento deve ocupar-se com tudo aquilo que passa por ‘conhecimento’ em uma sociedade, independentemente da validade ou invalidade última (...) desse conhecimento. E na medida em que todo conhecimento humano desenvolve-se, transmite-se e mantém-se em situações sociais, a sociologia do conhecimento deve procurar compreender o processo pelo qual isto se realiza, de tal maneira que uma ‘realidade’ admitida como certa solidifica-se para o homem de rua. Em outras palavras, defendemos o ponto de vista que a sociologia do conhecimento diz respeito à análise da construção social da realidade” (BERGER & LUCKMAN, 2002: 14)

Em grande parte, Berger e Luckmann reconhecem a dívida que possuem com relação a Schutz, principalmente no que diz respeito aos fundamentos do conhecimento na vida cotidiana. A sociologia do conhecimento de Berger e Luckmann (2002) articula igualmente pressupostos, a primeira vista incompatíveis, de diversas tradições da sociologia clássica. De Marx, inspiraram-se nos desdobramentos de sua antropologia implícita: o homem transforma por seu trabalho o mundo ao mesmo tempo em que, no processo, ele se transforma. Essa dialética marxiana forma o elo de uma associação improvável na sociologia, embora recorrente: o objetivismo durkheiminiano e o subjetivismo voluntarista weberiano. A realidade apresenta-se ao mesmo tempo como realidade objetiva, que se impõe aos sujeitos, a partir de fora, e também como resultado de significações que os sujeitos fazem dessa realidade. Agregam, ainda, de George H. Mead e do Interacionismo Simbólico, alguns pressupostos sócio-psicológicos para a análise do processo de interiorização da realidade social, que compreende, na sociologia, o que se designa pelo termo socialização.

Desse modo, a questão que lhes mobiliza diz respeito a uma passagem fundamental a ser desvelada: como é possível que significações subjetivas se tornem realidade objetiva. A fim de dar conta dessa questão, Berger e Luckmann abordam a realidade social a partir de dois processos mais abrangentes: institucionalização e socialização. Ambos compõem em conjunto o que os autores denominam de a dialética do social.

O livro – A Construção Social da Realidade: tratado de sociologia do conhecimento (2002) – é dividido em três grandes partes, que correspondem a problemática apontada acima: em primeiro, os fundamentos do conhecimento na vida cotidiana; em segundo, a sociedade como realidade objetiva (corresponde a sua institucionalização); e, em terceiro, sociedade como realidade subjetiva (corresponde a socialização). Nosso foco dirige-se a primeira parte do livro, em que fica mais clara a relação dos autores com a contribuição de Schutz.

Os autores passam, então, a considerar como a realidade cotidiana é acessível aos membros ordinários da sociedade. A vida cotidiana apresenta-se como realidade interpretada e dotada de significado. Ela é formada de processos de significação subjetivos que, quando compartilhados com outros, tornam-se, para nós, acessível como uma realidade objetiva. Diante dela, os membros da sociedade adotam uma postura natural. Isso quer dizer que a tomamos como uma realidade certa e previamente ordenada, independente da interpretação que dela fazemos em seguida. Povoada de objetos conhecidos por todos. Ela é, em parte, herdada, pois, previamente constituída, em grande medida, pelos predecessores.

“Seus fenômenos acham-se previamente dispostos em padrões que parecem ser independentes da apreensão que deles tenho e que se impõe a minha apreensão. A realidade da vida cotidiana aparece já objetivada, isto é, constituída por uma ordem de objetos que foram designados como objetos antes de minha entrada em cena” (BERGER & LUCKMANN, 2002: 38).

Sabemos que, na vida cotidiana, compartilhamos um mesmo mundo com outros, ainda que não seja da mesma maneira, isto é, a partir de perspectivas diferentes, segundo nossos próprios projetos e situação (nosso “aqui e agora”). Para uma fenomenologia sociológica, a vida cotidiana apresenta-se desde o início como um mundo intersubjetivo com amplas conseqüências em termos de formulação teórica. Segundo essa linha de investigação, partimos rotineiramente da suposição de que o outro vivencia o mundo da mesma maneira que nós, a partir de uma atitude natural, sem questionar sua validade, ou seja, aceitando simplesmente como ela é. Portanto, o mundo intersubjetivo da vida cotidiana, a realidade suprema, isto é, esfera de realidade privilegiada de interpretação das vivências, estrutura-se segundo alguns pressupostos que convêm enumerar: a) “sei que minha atitude natural com relação a esse mundo a esse mundo corresponde a atitude natural dos outros”; b) “(sei) que eles também compreendem as objetivações graças as quais este mundo é ordenado”; c) “(sei) que eles também organizam este mundo em torno do ‘aqui e agora’ de seu estar nele”; d) “(sei que eles) têm projetos de trabalho nele”; e) “sei também (...) que os outros têm uma perspectiva desse mundo comum que não idêntica à minha”; f) “(...) sei que há uma contínua correspondência entre meus significados e seus (dos outros) significados nesse mundo que compartilhamos em comum” (BERGER & LUCKMANN, 2002: 40

Além do mais, nossa interação com os outros, no dia a dia, encontra-se também pré-ordenada em tipos. Fazemos a compreensão dos outros a partir de um esquema tipificador, a partir do qual “lidamos” uns com os outros. Mesmo nas situações face a face, nossa interação é coordenada por esse esquema, pelo menos enquanto não se torna problemática. Agimos igualmente na suposição de que o outro também lida conosco segundo algum esquema tipificador, que buscamos reafirmar ou corrigir no curso de nossa interação, numa contínua negociação recíproca. Segundo Berger e Luckmann, tanto é assim quanto mais próxima e particularizada for a relação: “As tipificações da interação social tornam-se progressivamente anônimas à medida que se afastam da situação face a face” (2002: 50).

Através do processo de objetivação das significações subjetivas, o que quer dizer a construção de um conhecimento comum da vida cotidiana, o homem define um mundo comum, necessário a sua continuidade como espécie, que é internalizado na medida em que é constantemente reafirmado pelo comportamento e relacionamento dos homens entre si. Por essa dialética social, Berger e Luckmann (2002) desenvolvem na verdade uma sociologia do conhecimento que busca dar conta do próprio processo de construção social da realidade, fazendo uso de referenciais sociológicos diversos, mas fundamentados radicalmente na fenomenologia de Alfred Schutz.

c) Garfinkel

A etnometodologia é, para nós, um desdobramento sociológico de algumas intuições fundamentais de Schutz. Ela, a etnometodologia, está fortemente associada ao nome de Harold Garfinkel, que foi, ainda em Havard, “pupilo” de Parsons – sociólogo norte-americano que gozava de enorme prestígio no pós-guerra. Após sua formação em Havard, passou a ensinar sociologia na Universidade de Califórnia, onde se aposentou em 1988.

Crítico das proposições fundamentais de seu “mentor”, segundo o qual a ordem social persiste na medida em que a sociedade é bem sucedida em inculcar determinados valores nos agentes sociais, orientando-os quanto aos fins e aos meios adequados para alcançá-los, Garfinkel, fazendo uso de uma leitura bastante pessoal de Schutz, lança a etnometodologia. Inspirado em um trabalho de observação efetuado sobre deliberações de jurados, que, sem qualquer tipo de preparo técnico no direito, eram capazes de mobilizar um método de avaliação, fundamentando-se apenas em saberes e práticas comuns para julgar os argumentos e provas apresentados, Garfinkel volta-se para o estudo dos raciocínios práticos dos agentes sociais no desempenho de suas tarefas cotidianas. Seu interesse, portanto, era conhecer como os atores sociais fazem uso do saber de senso comum a fim de manter continuamente as atividades combinadas da vida cotidiana.

Daí deriva a etnomedologia: etno designa o conjunto de saberes de senso comum disponíveis; método, a escolha racional (segundo uma racionalidade própria) de como proceder, ou seja, escolha do curso adequado de ação pelos agentes; logia define um campo de estudo científico específico. Segundo Heritage: “Este campo da sociologia investiga o funcionamento do conhecimento produzido pelo senso comum e do raciocínio prático em contextos sociais” (1996: 148).

O conhecimento do senso comum é, dentro da perspectiva fenomenológica, fragmentado e incompleto; aceito, na atitude natural, como verdadeiro, pelo menos enquanto não existir razões para dúvidas; corrigível dentro dos limites de sua utilidade prática; e supostamente compartilhado entre os membros do grupo, articulado de forma tipificada. Esse conhecimento de senso comum oferece-se como recurso contextual de interpretações corriqueiras executadas pelos atores sociais em suas tarefas ordinárias. Considera-se, além disso, que o social é um processo, resultado da atividade permanente e conjunta dos membros sociais providos desse conhecimento de senso comum, a partir do qual são capazes de interpretar e coordenar reciprocamente as expectativas de condutas em condições sociais particulares e diversificadas.

Do ponto de vista do método, Garfinkel adotou uma variante do “pôr entre parênteses” da fenomenologia. Trata-se do recurso a política da “indiferença metodológica”, que consiste, segundo Heritage, em: “(...) o analista (...) suspender todos e quaisquer compromissos com versões privilegiadas da estrutura social (...) em favor do estudo de como os participantes criam, reúnem, produzem e reproduzem as estruturas sociais para as quais se orientam” (1999: 332).

Com o objetivo de demonstrar algumas de suas proposições gerais – a suposição da reciprocidade de perspectivas na atitude natural e o papel desempenhado pelo conhecimento de senso comum na estruturação e manutenção da compreensão comum das ações e artefatos – Garfinkel executa uma série de “experiências de ruptura”. Para ele, os atores sociais procuram corresponder seu comportamento, sobretudo, à “normalidade percebida dos eventos”. Sendo assim, buscou provar esse argumento a partir da introdução experimental de elementos perturbadores da seqüência “normal” dos eventos em contextos sociais definidos. Segundo Heritage, “tais manipulações poderiam ser usadas para determinar as condições sob as quais os eventos podem ser percebidos como normais e localizar os procedimentos pelos quais os agentes sociais procuram ‘normalizar’ as discrepâncias entre os eventos esperados e os eventos reais” (1999: 334).

Por fim, devemos considerar algumas propriedades gerais que os etnometodólogos atribuem às ações e ao uso da linguagem: a indexibilidade, a reflexibilidade e a describilidade (accountability). A indexação aponta que o sentido de uma ação ou expressão só pode ser apreendido a partir do seu contexto de utilização. A reflexibilidade indica o fato de que uma ação ou descrição participam, com efeito, da instituição de uma situação, isto é, constroem uma ordem social. E a describilidade reconhece que, através da linguagem, as ações podem ser descritas, narradas e analisadas.

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