ELIAS E FOUCAULT: OS ANTI-CARTESIANOS
José Remon Tavares da Silva
APRESENTAÇÃO
Abordaremos dois autores
dificilmente conciliáveis, Norbert Elias e Michel Foucault. Embora, em sua
superfície, compartilhem algumas referências terminológicas e questões sobre a
sociedade moderna, tais como poder, história, indivíduo, sujeito, autocontrole,
entre outros; eles diferem profundamente nos usos que fazem deles em função das
visões de mundo completamente distintas que os animam: Foucault buscava
subverter os processos e mecanismos em que nos enredamos a fim de potencializar
seus elementos criativos, na forma de sua abordagem e no mundo; Elias desejava
compreender as forças colocadas em movimento no mundo moderno a fim de evitar
os riscos de suas consequências danosas a partir do conhecimento científico de
seu funcionamento (SMITH, 2001). Procuraremos explorar as tensões entre os dois
a partir de questões levantadas por eles sobre a sociedade moderna com base na
noção de sujeito.
Para nós, o sujeito consiste em uma
categoria privilegiada de aproximação e distanciamento entre Elias e Foucault.
Embora compartilhem de uma a visão crítica em relação ao sujeito cartesiano
(sobre o qual falaremos brevemente adiante, junto a suas repercussões para a
filosofia e para o pensamento sociológico), a crítica de Elias e Foucault
consegue condensar as perspectivas teórica e políticas de cada autor em
questão. Por essa razão o tomamos como eixo de análise e comparação entre os
dois. Ademais, parece-nos curioso como a crítica comum de ambos tenha conduzido
a soluções tão divergentes e com amplos desdobramentos.
A perspectiva cartesiana do sujeito
remete a obra de René Descarte, filósofo francês do Século XVII (HOTTOIS, 2008;
REZENDE, 2002). Descartes, recusando qualquer princípio de verdade baseado no
embuste da autoridade ou na ardilosa experiência sensória, desejava lançar os
fundamentos sólidos e rigorosos do conhecimento a partir de procedimentos
absolutamente seguros. Através do artifício da dúvida radical, metodicamente
conduzida, Descartes procurou eliminar tudo o que lhe pudesse suscitar a menor
incerteza, ou que não tivesse um fundamento seguro e absolutamente
inquestionável. O “resíduo” encontrado é a consciência que duvida, em outras
palavras o sujeito (substância) pensante. Com isso Descartes estabelece o
primado do sujeito pensante sobre todas as coisas. Assim também, o fundamento
de sua existência encontra-se em si mesmo. Essa posição abre um problema
crucial sobre como é possível conhecer o mundo “fora” do sujeito. Para Descartes,
o mundo só poderia ser conhecido porque as regras que o regem são idênticas as
da consciência pensante (por operação e benevolência de um Deus generoso).
Assim, voltando-se para si, a razão bem conduzida poderia compreender o mundo
que o cerca de uma perspectiva estritamente racionalista. O corolário desse
expediente consiste nas separações entre mente e corpo e entre a interioridade
e a exterioridade, em suma entre sujeito e objeto, em que apenas o primeiro é
capaz de fornecer a base do conhecimento.
Assistimos ao desdobramento dessa
reflexão em outras correntes da filosofia, aqui apenas sumarizadas: a filosofia
transcendental de Kant, a fenomenologia de Husserl e o existencialismo de
Sartre. Para o primeiro, o sujeito é também um corpo; e, a partir dele, acessa
o mundo por meio das sensações. Contudo, as sensações não nos chegam
diretamente. Aquilo que somos capazes de perceber no mundo são produtos de
nosso entendimento, ou sínteses operadas pelas categorias a priori do
pensamento, em outras palavras, fenômenos. Dessa forma, nossas experiências
devem ser sempre remetidas a um sujeito pensante e a suas categorias imanentes.
Na fenomenologia, ao menos nos escritos iniciais de Husserl, toda possibilidade
de experiência do mundo dependia de um sujeito transcendental constituinte de
sentidos. O mundo careceria de sentido próprio. Apenas em sua relação com a
consciência doadora de sentido ele poderia aparecer como fenômeno. Por sua vez,
Sartre foi um discípulo da fenomenologia e o defensor assumido do existencialismo. Para ele, a existência precede a essência. A
vida livre do indivíduo concreto constitui o eixo de formação dos valores, do
conhecimento e das ações. O indivíduo torna-se aquilo que faz de sua vida dentro
das circunstâncias dadas.
Em suma, o sujeito pensante da
filosofia faz com que toda a realidade se desdobre em torno de um eixo egoico:
só existe o “eu”, tudo o mais deriva de suas ideias e atividade. Por essa via,
o sujeito converte-se no ponto de partida de todo o conhecimento. Essa perspectiva
que privilegia o sujeito tem algumas repercussões para as ciências humanas.
Para compreender a extensão do
subjetivismo (entendido aqui como a precedência do sujeito/indivíduo sobre a
ordem ou sobre a sua preservação diante dela) na sociologia, recorreremos a
Alexander (1996). Em sua apresentação sobre a relevância da teoria nas ciências
sociais, ele destaca algumas tradições da sociologia, segundo os compromissos
que realizam com pressupostos não empíricos, ou seja, as suposições mais gerais
endossadas pelo sociólogo em sua atividade de investigação sobre a ação e a
ordem social. A ação pode ser racional ou não racional: se as pessoas são
fundamentalmente egoístas ou idealistas, se agem de modo instrumental ou
segundo as normas, se são guiadas pela eficiência ou desejos e emoções. A
questão da ordem pode ser resumida segundo a ideia sobre a forma como ela
gerada: se a sociedade é estruturada de modo independente dos indivíduos que a
compõem ou se pode ser vista como resultado de suas ações e intenções. Da
combinação das preocupações sobre a ação e a ordem, compõem-se quatro grandes
tradições (que possuem internamente suas nuanças): racional-individualista,
racional-coletivista, normativo-individualista e normativo-coletivista.
Essas dimensões pressuposicionais
revelam o quanto a sociologia tem se preocupado com as questões relacionadas
com a liberdade e a ordem. De fato, tem sido um problema fundamental para os
pesquisadores na sociedade moderna preservar, em algum nível, a liberdade
individual. Segundo Alexander, a sociologia emerge da tensão entre indivíduo e
sociedade, quando o primeiro desenvolve, especialmente na sociedade ocidental
moderna, seu senso de independência e a sua capacidade de pensar livremente,
permitindo a ele problematizar a sociedade como objeto: “A tensão entre
liberdade e a ordem fornece uma justificação intelectual e moral para a
sociologia: a sociologia explora a natureza da ordem social em grande medida
porque lhe interessa suas implicações para a liberdade individual” (1996: 11).
A separação entre o sujeito do conhecimento e o objeto, no caso a sociedade,
reclama a sociologia como disciplina científica.
Em diversas gradações, essas tensões
encontram-se presentes nas teorias sociológicas. Os pensadores selecionados
aqui, Norbert Elias e Michel Foucault, têm se posicionado explicitamente sobre
a questão. Suas elaborações teóricas constituem em respostas bastante
inovadoras e um esforço significativo de superar a pressuposição do sujeito
cartesiano na elaboração teórica sobre a sociedade moderna. Discutiremos o tema
em duas partes. Na primeira, abordamos Elias a partir de sua noção de homo
clausus. A partir dessa noção consideraremos sua concepção de história, de
poder e fundamentação da teoria sociológica. Na segunda parte, contemplaremos a
obra de Foucault, tomando o que ele consideraria mais tarde como o seu problema
principal, a relação entre o sujeito e o poder. Consideraremos essas questões
sob o pano de fundo de sua concepção de história e de conhecimento. Na parte
final, apresentamos uma síntese das principais convergências e divergências
entre os dois em relação ao sujeito.
1. NORBERT ELIAS
Elias tornou-se uma figura reconhecida internacionalmente na
sociologia apenas no fim de sua vida (SMITH, 2001). Tendo escrito suas
principais obras no conturbado período que antecipou a segunda grande guerra,
ainda no seu exílio na Inglaterra nos anos 30, passou a ser reconhecido e ter seus
textos traduzidos em diversas línguas por volta dos anos 80 e 90. Norbert Elias
notabilizou-se principalmente pela sua obra de maior fôlego, O Processo
Civilizador (2011), lançado em dois volumes. Trata-se de um estudo histórico
amplo e teoricamente ambicioso em que ele pretendia descrever e explicar a
emergência do Estado-nação e das maneiras de sociabilidade modernos
(civilidade), enquanto aspectos de um mesmo processo. Dessa obra, junto com a Sociedade
da Corte, que lhe antecedeu, Elias oferece, com base numa elaboração
teórica construída especialmente para dar conta de dimensões específicas do
desenvolvimento histórico da sociedade moderna, o seu arcabouço conceitual
(SIMTH, 2001; VAN KRIEKEN, 1998).
Entre as concepções trazidas por Elias, encontra-se a de homo
clausus (ELIAS, 2011; 1994). Ela condensa uma intuição que desenvolvemos
sobre a nossa experiência no mundo, especialmente nas sociedades mais avançadas
do ponto de vista civilizacional, a partir da qual estruturamos nosso
entendimento, separando um mundo interno de outro, externo. Delineia-se como uma
barreira invisível que garante e preserva a integridade interior do indivíduo frente
ao mundo externo. Assim, o ser humano passou a se projetar como ente externo a
natureza, de onde passa a observá-la, emocionalmente desvinculado, igualmente como
passa a olhar para os outros, enquanto entidades fechadas em si mesmo, sem
qualquer relação consigo.
A concepção do indivíduo como homo
clausus, um pequeno mundo em si mesmo que, em última análise, existe
inteiramente independente do grande mundo externo, determina a imagem do homem
em geral. Todo outro ser humano é igualmente visto como homo clausus.
Seu núcleo, seu ser, seu verdadeiro eu aparecem igualmente como algo nele que
está separado por uma parede invisível de tudo que é externo, incluindo todos
os demais seres humanos (ELIAS, 1994: 230).
Essa intuição de uma interioridade
encapsulada é o corolário de determinado estágio de desenvolvimento psicológico
trazido com o avanço do processo civilizador. Não corresponde, portanto, a
nenhuma essência humana. Desse modo, o homo clausus deve ser
compreendido melhor como um mito: uma representação, em algum nível, fantasiosa,
sobre o que nos constitui como seres humanos e que, ao mesmo tempo, nos orienta
como devemos conduzir nossa existência no mundo e com os outros. A categoria
deve ser denunciada como falsa, especialmente no uso que se faz dela na
sociologia. Mesmo Parsons e sua crítica a visão utilitarista da ordem social
não é poupado da acusação de Elias de ser mais um retorno inadvertido ao homo
clausus[1].
Segundo Van Krieken, na visão de Elias:
Parsons endossou um argumento contra
o que via como uma posição utilitarista, de que apenas um constrangimento
externo poderia produzir a ordem (social), colocando na frente supostamente uma
visão mais sociológica de que a ordem emerge da internalização das normas
sociais, o que acabou por ser reconhecido na sociologia pelo conceito de
socialização. O principal problema aqui é que Parsons, como os autores contra
quem argumentava, assumia que o ordenamento social é externo aos indivíduos
humanos. Seu argumento era apenas sobre como esses constrangimentos
externos deveriam ser conceitualizados, em termos força bruta ou normas e
socialização (1998:43)
Enquanto persistir a visão de que o
indivíduo permanece uma substância fechada em si mesma, a sociedade não poderá
ser vista como nada além de uma coleção de entidades desconexas e justapostas.
Elias não se conforma em denunciar a ingenuidade dessa falácia, e indica o seu
fundamento e, consequentemente, aponta os caminhos para a teorização
sociológica. Na introdução da edição de
1968 de O Processo Civilizador, Elias escreve:
Se perguntamos, mais uma vez, o que
realmente deu origem a esse conceito de indivíduo como encapsulado “dentro” de
si mesmo, separado de tudo o que existe fora dela, e o que a cápsula e o encapsulado
realmente significam em termos humanos, podemos ver agora a direção em que deve
ser procurada a resposta. O controle mais firme, mais geral e uniforme das
emoções, característico dessa mudança civilizadora, juntamente com o aumento de
compulsões internas que, mais implacavelmente do que antes, impedem que todos
os impulsos espontâneos se manifestem direta e notoriamente em ação, sem a
intervenção de mecanismos de controle – são o que é experimentado como cápsula,
a parede invisível que separa o “mundo interno” do indivíduo do “mundo externo”
ou, em diferentes versões, o sujeito de cognição de seu objeto, o “ego” do
outro, o “indivíduo” da “sociedade”. O que está encapsulado são os impulsos
instintivos e emocionais, aos quais é negado acesso direto ao aparelho motor.
Eles surgem na autopercepção como o que é ocultado de todos os demais, e, não
raro, como o verdadeiro ser, o núcleo da individualidade (2011: 237-238)
Para Elias, portanto, a percepção de
um encapsulamento – o invólucro que nos contém e caracteriza como uma
individualidade – é efeito de nosso autocontrole: o controle exercido por nós
mesmos sobre nossos impulsos espontâneos e suas manifestações no mundo externo.
O encapsulamento aparece como contenção: aquilo que encerra os limites e inibe
o transbordamento. Pelo exercício do autocontrole, ou da contenção,
afastamo-nos de qualquer ligação emocional com os outros, restando um
sentimento de isolamento e solidão. É precisamente esse sentimento que
fundamenta a intuição do indivíduo como “personalidade fechada”. A fim de
superar essa visão e a teorização sociológica a ela correlata, Elias propõe que
se adote a visão de homones aperti, enquanto constelação de seres
influenciando-se reciprocamente, mesmo que, em maior ou menor grau, cada um
preserve alguma autonomia.
Somente quando o indivíduo para de tomar
a si mesmo como ponto de partida de seu pensamento, para de fitar o mundo como
alguém que olha de “dentro” de sua casa para a rua “lá fora”, para as casas “do
outro lado”, e enquanto é capaz – por uma nova revolução copernicana em seus
pensamentos e sentimentos – de ver a si a sua concha como parte da rua, de
vê-los em relação a toda a rede humana móvel, só então se desfaz, pouco a
pouco, seu sentimento de ser uma coisa isolada e contida “do lado de dentro”,
enquanto os outros são algo separado dele por um abismo, são uma “paisagem”, um
“ambiente”, uma “sociedade” (ELIAS, 1994: 53)
Assim, em grande medida,
Elias critica todas as abordagens sociológicas que partem de uma separação
presumida entre indivíduo e sociedade, ego e alter, para avançar numa
teorização baseada na articulação genuína entre os termos da oposição binária.
Embora contrária à nossa intuição ou percepção espontânea a respeito de nós
mesmo e da sociedade, para Elias, devemos tomar os seres humanos por aquilo que
realmente são: seres formados em sua relação com os outros, em um sentido
bastante penetrante de nossa constituição pessoal. “A ideia de que pessoas
‘estranhas’ possam ser parte integrante da formação de sua individualidade parece,
hoje em dia, quase uma transgressão dos direitos do sujeito sobre si mesmo”
(ELIAS, 1994: 53).
O indivíduo não deveria
ser o ponto de partida de qualquer apreciação sociológica, mas as relações
sociais. Ao invés de considerar os estados do indivíduo (na fase adulta em
geral) e da sociedade e a partir daí suas relações, a sociologia teria a tarefa
de investigar as relações gerativas entre os termos em processos de longo
escopo. Elias cunha o termo figuração para representar a rede de
interdependência entre indivíduos e grupos, em constante transformação e
assimétricas em termos de poder. A metáfora reticular ajuda a compreender noção
de figuração ao menos como uma imagem estática (portanto, limitada): um tecido
formado por linhas entrelaçadas, envergando-se umas em relação às outras, com
umas mais espeças, forçando outras a dobrarem mais em sua passagem. Segundo
Elias:
Seres humanos singulares convivem uns
com os outros em formações determinadas. Os seres humanos singulares se
transformam. As figurações que eles formam uns com os outros também se
transformam. Mas as transformações dos seres humanos singulares, e as transformações
das figurações que eles formam uns com os outros, apesar de inseparáveis e
entrelaçadas entre si, são formações em planos diferentes e de tipo diferente.
Um ser humano singular pode ter relativa autonomia em relação a determinadas
figurações, mas em relação às figurações em geral, quando muito, apenas em
casos extremos. As figurações podem ter autonomia relativa em relação a
determinados indivíduos que as formam no aqui agora, mas nunca em relação ao
indivíduo em geral (2006: 26-27).
A figuração, como
disposição constelar de indivíduos e grupos em intercâmbio de modo
interdependente, não resultaria da vontade dos indivíduos ou de quaisquer
grupos particulares, salvo em circunstâncias bem determinadas e limitadas. A
margem de “manobra” de cada um depende da sua posição na configuração da rede.
O poder, portanto, compreende antes a capacidade de um indivíduo, em virtude da
posição ocupada na rede, de se autodeterminar e influenciar a outros em
posições de menor autonomia. Fica evidente a proximidade com relação ao
pensamento de Giddens, para quem o poder reflete uma capacidade acumulada maior
de mudança e influência na estrutura.
Nesse tipo de constelação reticular,
pode ser muito grande a margem de decisão acessível às pessoas que ocupam
funções de liderança. Mas, seja maior ou menor a margem de decisão do
indivíduo, o que quer que ele decida o alia a alguns e afasta de outros. Tanto
nas grandes questões quanto nas pequenas, ele está preso à distribuição de
poder, às estruturas de dependência e das tensões no interior do grupo. Os
possíveis cursos de ação entre os quais ele decide são predeterminados pela
estrutura de sua esfera de atividades e pela trama desta. E, dependendo de sua
decisão, o peso autônomo dessa trama trabalhará a seu favor ou contra ele
(ELIAS, 1994:51)
Elias também defende a
imprescindibilidade dos indivíduos para a sociedade. Não pode haver sociedade
se não existirem pessoas agindo de modo interdependente, não importa, na maioria dos casos,
quem exerce quais funções. Mas, mais importante, é que não pode haver pessoas,
senão no seio da sociedade. Conquanto carecemos, na visão de Elias, de
mecanismos de regulação hereditárias, como nos demais seres vivos;
desenvolvemos uma estrutura de auto-regulação psíquica através das interações estabelecidas
com outros seres humanos, em conformidade com a configuração particular das
funções e suas relações de dependência em um contexto determinado.
O que molda e compromete o indivíduo
dentro desse cosmo humano, e lhe confere todo o alcance de sua vida não os
reflexos de sua natureza animal, mas a inerradicável vinculação entre os seus
desejos e comportamentos e os das outras pessoas, dos vivos, dos mortos e até,
em certo sentido, dos que ainda não nasceram – em suma, sua dependência dos
outros e a dependência que os outros têm dele, as funções dos outros para ele e
suas funções para os outros (ELIAS, 1994: 43)
A sociedade não é apenas um conjunto
dado de relações entre indivíduos e suas funções recíprocas e mutuamente
dependentes, mas, igualmente, consiste em um encadeamento de transformações,
sem necessariamente apresentar uma origem e sem um fim predefinido. Em linhas
gerais, as sociedades se movem ou no sentido de uma maior diferenciação de suas
funções e integração ou no do seu retraimento, com possibilidade de reversão.
Assim, para Elias, “O conceito de processo social refere-se às transformações
amplas, contínuas, de longa duração (...) de figurações formadas por seres
humanos, ou de seus aspectos (...)” (ELIAS, 2006: 27-28).
As transformações de longo prazo
podem reordenar profundamente as configurações das funções e da composição das
relações de poder, criando longas e complexas redes de interdependência. As intricadas redes de interdependência
engendradas exigem um nível maior de autocontrole e refreamento dos impulsos.
Tanto maior o nível de diferenciação e dependência das funções, mais elevada a
auto-regulação psicológica requerida do indivíduo: “a interdependência das
funções humanas sujeita o indivíduo” (ELIAS, 1994: 26). Não seriam as coações
exteriores as forças por traz do processo civilizador, mas o autocontrole. Em
uma sociedade civilizada, o avanço no sentido da diferenciação e integração,
por meio de deslocamentos no poder, poderia gerar as condições de exigência de
um maior autocontrole e de renúncia às pulsões. E, conforme gostaríamos de
argumentar, são essas condições que dão suporte às concepções espontâneas como
a do homo clausus nas sociedades avançadas.
Ela (a estrutura psicológica
estabelecida em certos estágios de um processo civilizador) se caracteriza por
uma diferenciação e uma tensão especialmente intensas entre as ordens e
proibições sociais inculcadas como autodomínio e os instintos e inclinações não
controlados ou recalcados dentro do próprio ser humano. É esse conflito no
interior do indivíduo, essa “privatização” ou exclusão de certas esferas da
vida da interação social, e a associação delas com o medo socialmente instilado
sob a forma de vergonha e embaraço, por exemplo, que levam ao indivíduo a achar
que, “dentro” de si, ele é algo que se relaciona com os outros “do lado de
fora”. (...) O abismo e o intenso conflito que as pessoas altamente
individualizadas de nosso estágio de civilização sentem dentro de si são
projetados no mundo por sua consciência (ELIAS, 1994: 32)
2. FOUCAULT
Embora seja difícil situar Michel
Foucault, por sua personalidade elusiva (SMITH, 2001), em uma escola teórica,
muitos o classificam como pós-estruturalista (RITZER, 1997; WILLIAMS, 2012;
JOAS; KNOBLE, 2009). Essa filiação tem uma significação especial para a questão
com a qual estamos lidando: a crítica do sujeito cartesiano. Com efeito, o
estruturalismo caracterizava-se pelo seu distanciamento em relação à
perspectiva humanista, segundo a qual o ser humano possuiria uma essência que deveria
ser preservada ou ampliada contra as forças externas limitantes, alienantes ou
opressivas. O pós-estruturalismo, por sua vez, volta-se para o sujeito, não
mais para a busca de sua unidade ou núcleo, mas das forças descentradas
responsáveis pela sua constituição.
Assim, para dar início, é importante
registrar que Foucault era bastante crítico com relação à concepção de sujeito
cartesiano, como uma consciência solipsista (tudo que existe são nossas
experiências) e a-histórica/ transcendental. Em seu lugar, ele prefere pensar o
sujeito como historicamente constituído, no interior da trama e das relações de
poder e saber (REVEL, 2005). O sujeito, portanto, seria, por um lado, aquele
sob o controle ou dependente de outro, e, por outro lado, aquele vinculado a
uma identidade que passa a reconhecer como sua (FOUCAULT, 2013). Segundo Joas e
Knoble: "(...) o sujeito é um efeito de poder ou mais precisamente um
efeito de técnicas específicas de poder, que se desenvolveram desde o início do
período moderno, particularmente nos séculos dezoito e dezenove os quais têm
submetido os seres humanos a mecanismos detalhados de escrutínio" (2009:
359). Foucault afirma que, ao longo de suas pesquisas, sempre subsistiu a
questão sobre os modos pelos quais nos tornamos sujeitos: "Meu objetivo
(...) foi criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa
cultura, os seres humanos tornam-se sujeitos" (2013:273).
Foucault concentra-se em como a
constituição do sujeito é colocada em relações de poder e discurso. Isso faz com
que ele se volte para as questões relacionadas ao poder, a partir da analítica
do poder, ou seja, não segundo qualquer princípio fundamental de sua
constituição ou de sua natureza, mas dos modos como o poder efetivamente
funciona.
Segundo Foucault, por muito tempo, o
poder vinha sendo exercido, pelo soberano, como direito sobre a vida, através
da morte: "o direito de causar morte ou deixar viver"(2014:146).
Trata-se de um direito sobre a vida em que o soberano possui a prerrogativa de
lhe pôr fim a título de castigo ou exigir o sacrifício em seu nome. A época
clássica experimentou uma forma profundamente diferente de exercício de poder
(FOULCAULT, 2014). Ela tornou-se mais proeminente com a formação Estado moderno
e de sua forma peculiar de exercício de poder, tanto individualizante como
totalizante (RABINOW, 1984). Para entender melhor essas características,
Foucault (2013) volta-se para as tecnologias de poder praticadas nas
instituições cristãs, caracterizada como tecnologia de poder pastoral. Ela pode
ser descrita sumariamente em seus aspectos principais:
a)
O
seu objetivo é assegurar a salvação individual no outro mundo;
b)
É
um poder que não apenas comanda, mas que se sacrificar pela vida e salvação do
rebanho;
c)
Cuida
não apenas da comunidade, mas de cada indivíduo em particular;
d)
É
um poder que se baseia na confissão, a fim de conhecer os segredos íntimos e
dirigir a consciência dos seguidores.
Em suma, trata-se de um poder
dirigido para a salvação na outra vida, individualizante e abrangente, e
relacionado a um saber baseado em uma verdade do próprio indivíduo. O poder
pastoral busca moldar o indivíduo para que ele alcance a própria salvação após
a morte. No Cristianismo, por meio da confissão, buscava-se alertar ao fiel
sobre suas fraquezas a fim de que ele pudesse se redimir e encontrar o caminho
para a salvação. Cuidava-se, assim, da alma de ovelha com a finalidade de
salvar todo o rebanho. O Estado moderno consistiria numa nova forma de poder
pastoral, modificando alguns pontos e ampliando em novas direções.
a)
Muda
o objetivo: assegurar a vida nesse mundo: saúde, bem-estar, segurança e
proteção;
b)
Ampliação
na sua administração: encontra apoio em uma diversidade de instituições;
c)
Um
desenvolvimento nas formas de conhecimento sobre homem: um globalizador e
quantitativo, demografia; e outro analítico, concernente ao indivíduo.
Essas transformações fizeram da vida
e suas funções uma questão central de administração e gestão do Estado moderno:
“O homem, durante milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal
vivo e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal
em cuja política sua vida de ser vivo está em questão” (FOUCAUL, 2014:
154-155). Não seria exercido por um poder central, mas estaria difuso na
sociedade, presente em diversas instituições: escolas, asilos, exército,
prisões, clínicas e outras. Sua meta seria o melhoramento do desempenho em um
sentido útil para a coletividade. Trata-se, portanto, de um poder positivo, mas
não menos restritivo, portanto também subjetivante. Foucault caracteriza essa
nova forma de exercício de poder como biopoder: “Se pudéssemos chamar
“bio-história” as pressões por meio das quais os movimentos da vida e os
processos da história interferem entre si, deveríamos falar de “biopolítica”
para designar o que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos
cálculos explícitos, e faz do poder-saber um agente de transformação da vida
humana” (FOUCAULT, 2014: 154).
O biopoder desdobrou-se em dois
sentidos, ou polos, inicialmente de modo separado, mas depois, interligados: um dos polos referia-se aos seres humanos
como espécie; o outro, ao corpo humano como máquina, ou objeto a ser manipulado
(FOUCAULT, 2014; RABINOW, 1984; DREYFUS; RABINOW, 2013). No primeiro, de modo
inédito na história, o corpo e seus processos biológicos tornaram-se foco de
atenção política: nascimentos, mortalidade, longevidade, bem como outras
condições e dimensões da vida. Na racionalidade política emergente (DREYFUS;
RABINOW, 2013), o poder de um Estado estaria atrelado às condições de sua
população, não da virtude de seu povo, mas de seus mecanismos biológicos e suas
correlações.
No segundo polo, aparece o corpo
como uma máquina, não mais como uma entidade biológica, mas um objeto a ser
manipulado para dele retirar o melhor proveito. Desenvolve-se toda uma
tecnologia do corpo como objeto do poder, a disciplina, em diversos espaços da
sociedade, na escola, na fábrica ou nas prisões, com a finalidade de ampliar
suas aptidões, espoliar suas forças e garantir a sua docilidade. Ela impõe a
sujeição constante dos corpos, sua docilidade e utilidade. O exemplo mais acabado
de controle disciplinar é o panóptico, modelo de arquitetura prisional
elaborado por Jeremy Bentham, em que uma torre, erguida no centro de um
edifício circular, permitiria observar todos os detentos sem que esses pudessem
confirmar que estavam sendo observados. A expectativa de serem observados induziria
efeitos de poder. Foucault, em vigia e punir (2010) e em História da
Sexualidade: volume 1 (2014), sugere haver relações entre o biopoder e o poder
disciplinar com o desenvolvimento do capitalismo.
Esse biopoder, sem a menor dúvida,
foi elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só pôde ser
garantir à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e
por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos.
Mas o capitalismo exigiu mais do que isso; foi-lhe necessário o crescimento
tanto de seu reforço quanto de sua utilidade e docilidade; foram necessários
métodos de poder capazes de majorar as forças, as aptidões, a vida em geral,
sem por isso torna-las mais difíceis de sujeitar (...) (FOUCAUL, 2014: 151-152)
O Século XIX anuncia uma nova
técnica de sujeição e maximização da vida, quando a sexualidade entra no espaço
gravitacional das preocupações da ciência, do controle administrativo e da
sociedade: “(...) a sexualidade emergiu como um componente central em uma
estratégia de poder que, de forma eficaz, reuniu o indivíduo e a população
através da expansão do biopoder” (DREYFUS; RABINOW, 2013: 221). Não apenas o
corpo e seus gestos, mas também os desejos mais recônditos se tornaram objeto
de uma tecnologia específica, com implicações profundas na expansão do
biopoder. “Graças ao dispositivo da sexualidade, o biopoder estendeu sua rede
aos menores movimentos do corpo e da alma, através da construção de uma
tecnologia específica: a confissão do sujeito individual, pela autorreflexão ou
pelo discurso” (DREYFUS; RABINOW, 2013: 222).
A confissão, portanto, é o seu
instrumento privilegiado, e trouxe consigo amplas ramificações em termos de
efeitos de poder. Segundo Foucault (2014), a confissão não era uma prática
estranha no Ocidente. Ela consiste num ritual ou uma técnica em que aquele que
fala é também o objeto do que é enunciado. A confissão desenrola-se na presença
de um outro (real ou suposto) que a solicita ou extorque. Nela, o que é dito
requer uma autenticação realizada pelo outro que a escuta. Desse modo, se bem
conduzida, a confissão promete efeitos múltiplos em quem a profere: o perdão, a
purificação, a redenção, a expurgação das falhas e a libertação.
A verdade do sexo, desse modo, não
provinha de uma sabedoria superior e transmitida pela revelação de um mestre,
como na ars erótica de algumas
civilizações orientais; mas vinha de baixo, de muitos sujeitos, incitados ou
coagidos a falar e mostrar a verdade sobre si mesmos, seus desejos e obsessões,
de algum modo orquestrado por um perito. Com a confissão, o sujeito procurava
um conhecimento a respeito de si que, mesmo partindo dele, lhe era ainda
estranho e exigia a participação de outro para a sua revelação. Desse modo, ao encontrar
essa verdade revelada, o sujeito opera, na realidade, transformações em si
mesmo. A confissão da verdade aparece como uma técnica que liga, de modo sutil,
a construção da verdade ao exercício de um poder individualizante e
subjetivante.
A sexualidade emerge, enquanto
verdade do sexo e de seus prazeres, como corolário da scientia sexualis e de seus procedimentos confessionais. A sexo
emerge discursivamente como um princípio oculto e enigmático que nos atravessa,
nos constitui, e, no entanto, nos escapa. A verdade sobre o sexo aparece como
revelação de uma verdade sobre nós mesmos que desconhecemos e nos determina.
Verdade que se revela, não como propriedade do próprio sexo, mas em função das
artimanhas de poder implicadas em sua produção discursiva.
Assim, resumem-se dois grandes mecanismos
de subjetivação, i.e. processos de constituição do sujeito (REVEL, 2005). De um
lado, os modos objetivantes, que submetem o indivíduo e seus gestos a um
refinado escrutínio e controle, visando ampliar as capacidades e transformar em
seres dóceis, por meio de técnicas de vigilância, disposição, classificação e
temporalização dos corpos e movimentos, segundo hierarquias definidas e métodos
de exame individualizante. De outro lado, as técnicas de si, por meio das quais
o indivíduo é confrontado consigo mesmo através de práticas discursivas e
levado a assumir a verdade relevada sobre si. Constituem-se em técnicas de
subjetivação que se articulam a determinada forma de poder, o biopoder.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Recorremos
a crítica de ambos autores, Elias e Foucault, à concepção de sujeito cartesiano
como critério para eleger alguns aspectos da obra de cada um. Vários temas,
portanto, colocamos de lado. Alguns deles talvez pudessem ser incluídos. Mas,
em virtude da síntese que tivemos que realizar, não nos foi possível
contemplar: penso, por exemplo, no processo de civilizador de Elias, que
poderia ter sido descrito e analisado com mais detalhes e mais atento às suas
implicações; ou a concepção de genealogia de Foucault, inspirada na Genealogia
da Moral de Nietzsche. No entanto, dentro do que nos propomos realizar,
conseguimos destacar elementos nas perspectivas teóricas de cada autor que
permitem observar a distância reservada entre eles. Em primeiro lugar, a
própria concepção de história ou processo histórico. Ambos são refratários a
concepção teleológica da história. Contudo, Elias está mais propenso a observar
os encadeamentos das transformações de longo alcance histórico; enquanto
Foucault enfatiza as descontinuidades históricas. Em segundo lugar, a noção de
poder entre os dois autores tem uma importância significativa. Nenhum dos dois
viam o poder como uma substância: não seria uma coisa possuída em maior ou
menor grau por um indivíduo ou grupo, mas presente nas relações sociais. Contudo,
Elias via a dinâmica do poder nos processos figuracionais; e Foucault observava
o poder nos termos da resistência, no equilíbrio dinâmico entre determinação e
liberdade. Ademais, conforme vimos, o poder tinha, em Foucault, um importante
aspecto discursivo, e remetia a constituição dos saberes, objetivantes ou
interpretativos. De onde, também, podemos retirar o nosso terceiro aspecto: o
papel do intelectual. Elias era bastante otimista em relação ao conhecimento
científico. A ciência realizou grandes descobertas, relacionadas com uma nova
perspectiva desenvolvida graças ao processo civilizador, em que o homem passou
a observar o mundo de modo desapaixonado, como um objeto. O problema, para
Elias, é que ele terminou se constituindo como um homo clausus, perdendo de vista sua conexão com os demais. Assim, o
conhecimento, para que ele possa nos ajudar a evitar as agruras do processo
civilizador ou evitar o retrocesso, deverá realizar uma nova revolução, para
que possa ver o homem como aquilo que é: um ser penetrado de ponta a ponta pelo
mundo social. Para Foucault, as ciências humanas estão profundamente implicadas
em processos de poder. Diferentemente das ciências naturais, mesmo inicialmente
constituída sob a égide de novas formas de poder, que podem delas se deslocar a
fim de construir, observar e analisar seus objetos; as ciências humanas,
objetivas ou interpretativas, são subjetivantes sempre que pretendem revelar
uma verdade profunda sobre os seres humanos. Por essa razão, talvez, vemos
Foucault tão reticente com relação a definições claras e precisas dos conceitos
por ele utilizados, preferindo, no lugar, descrever a metodologia de análise.
Foucault também acredita que o intelectual universal, aquele capaz de nos
revelar a verdade sobre o mundo e o sentido da vida, teve a sua importância
diminuída. O verdadeiro intelectual moderno é um especialista, concentrado em
algumas dimensões e aspectos do mundo, mas nem por isso menos relevante
politicamente. A verdade não existe fora do poder ou sem poder. “A verdade é deste mundo; ela é produzida
nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder”
(FOUCAULT, 2012: 52).
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[1]
Elias discute de forma abundante as insuficiências e limitações de Parsons na
introdução à edição de 1968 de O Processo Civilizador (2011).Nessa,
convém lembrar, Parsons não detinha a centralidade que tivera nos anos 50.
Diversas outras correntes da sociologia já haviam surgido, contestando aspectos
de sua obra. Elias, então, põe em questão duas dimensões da obra parsoniana,
com maior ou menor razão: a concepção estática da sociedade e a dicotomia
sociedade e indivíduo (como entidades separadas).