segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Feminismo

Parece-me quase um lugar comum do ensino da sociologia iniciar sua apresentação com a afirmação quase gasta de Wright Mills, segundo o qual a sociologia se desvela sobre uma questão fundamental que pode ser formulada numa pergunta enganosamente simples: qual a relação existente entre a biografia individual e o contexto histórico no qual ela se desenrola? A questão parece fácil, mas não o é. Isso porque essas relações não são evidentes, e são, além disso, metodologicamente difíceis de rastrear. Com relação a determinados indivíduos, que participam, voluntariamente ou involuntariamente, de determinados grupos ou categorias, com fortes implicações sobre seus destinos, muitas vezes não são colocadas essas questões, por conta dos mesmos condicionantes sociais históricos dos quais tomam parte.

Assim, iniciamos essa capacitação considerando, desde já, os desafios que são colocados no horizonte: naturalizamos, isto é, damos por certos, alguns padrões de relacionamento, entre os quais aqueles relativos aos gêneros, de modo que, presos que estamos a eles, não conseguimos observá-los com a estranheza necessária da investigação sociológica rigorosa. Nossa primeira aproximação com o tema (supondo que começamos hoje a nos questionarmos sobre ele) deve contemplar não só a estranheza com relação aos modos naturalizados, mas, igualmente, dos modos como vêm sendo tratados academicamente, a fim nutrir e frutificar o elemento crítico indispensável da investigação científica.

Damos início, portanto, à essa introdução mostrando como ao longo do tempo foram se desenvolvendo, abandonando ou incorporando diversas perspectivas referentes à relação entre gênero e sociedade. Essa visão panorâmica nos dará subsídios para explorarmos com maior segurança e discernimento as pesquisas que realizadas sobre o feminismo, gênero e história da mulher. Dessa apreciação de abertura, excluímos considerações acerca da história da mulher ou do feminismo enquanto movimento político, que teremos oportunidade de ver adiante, quem sabe?. Concentramo-nos, por hora, no aspecto teórico /científico.

Dividiremos, a fim de melhor entender, o feminismo, enquanto movimento teórico, em 3 fases: a fase da teoria crítica, a fase da visibilidade e a fase da reflexibilidade. Digamos que elas não apresentam necessariamente uma ordem cronológica, mas de desenvolvimento de reflexão teórica. Desse modo, não queremos dizer que uma fase tem seu momento de brilho intenso logo ofuscado pela fase seguinte, mas que, do ponto de vista lógico, a fase seguinte sempre supõe os desdobramentos da fase anterior. Dito isso, devemos considerar também que nenhuma das fases tenha esgotado suas possibilidades e vigor teórico.

1) A Primeira Fase, da Teoria Crítica, tem início com o ano conturbado de 1968, sob o impulso dos movimentos contestadores da esquerda.

a) Em primeiro lugar, contestou as pretensões de neutralidade e objetividade das ciências sociais: questionou não apenas aquilo que se pretendia conhecer, mas principalmente o “como” (procurando alternativas metodológicas) e “por quem” era produzido o conhecimento científico. É submetida à crítica, por exemplo, a noção de papel sexual desenvolvida na escola americana de sociologia, sob a liderança de Talcot Parsons, que designiva, a rigor, o entendimento dominante de gênero. A noção remetia ao que se compreendia serem as posições sociais de homens e mulheres sobre as quais são fixadas expectativas e normas. Ora, sendo um papel social, pode-se entrar e sair, desempenhar de forma mais ou menos bem. Ao contrário, o gênero não é escolhido, nem se pode abandonar. De modo que a noção de papel sexual é apenas uma expressão ideológica do poder e opressão que “invisibiliza” o que o gênero realmente é.

b) Ainda na primeira fase, percebe-se uma aproximação crítica (bom frisar) com relação ao marxismo. Assim é que procuram descobrir um entendimento implícito de gênero no marxismo, pelo menos em dois pontos fundamentais inter-relacionados. i) nos termos centrais da teoria marxista da produção e reprodução, que correspondem à visão naturalizada na época segundo a qual a produção, central na sociedade (principalmente no K´), é dominada pelos homens; ao passo que a reprodução, ligada ao ambiente doméstico e à criação dos filhos, secundário, era o espaço da mulher. Coube ao movimento feminista mostrar a esfera da reprodução como trabalho e a relação entre as duas esferas. ii) o outro aspecto diz respeito à própria noção de classe social. Tomando a produção como ponto de partida, aqueles situados fora dessa esfera não possuiriam uma classe própria. Assim, mulheres e crianças teriam suas posições subsumidas a classe do marido/pai. Denunciam assim que são as atividades tipicamente masculinas que definem as classes com implicações sobre a capacidade de entendimento da divisão de gênero na atividade produtiva, e, consequentemente, o fraco reconhecimento das reivindicações das operárias. iii) desenvolveu-se ainda um questionamento quanto ao trabalho doméstico, se geraria ou não mais-valia. No fundo, contudo, não contribuiu muito para a emancipação da mulher. Registramos, portanto, a limitada contribuição do pensamento marxista para dar conta, na época, da situação da mulher nas sociedades K´.

c) A teoria do patriarcado é também filha do marxismo. Tal como ele, sua abordagem teórica procura dar conta da totalidade e dos aspectos estruturais: as causas fundamentais (explicação ontogenética) são procuradas, desta vez não mais nas relações de produção, mas nas relações de gênero. Entre os anos 70-80, a questão principal gravita em torno de como definir o patriarcado, especificamente seu lugar na determinação histórica: i) a primeira abordagem, feminismo dualista, congregava aqueles a favor de duas diferentes teorias – uma para explicar o desenvolvimento da sociedade e outra, a opressão das mulheres; ii) o feminismo radical acreditava que a organização de gênero era o princípio básico de toda a sociedade, cujas raízes fixavam-se no controle da reprodução pelo homem; iii) e, por fim, a abordagem feminista materialista, segundo a qual a divisão do trabalho foi realizada primeiramente entre gêneros. Essas abordagens tinham em comum uma questão fundamental – “por que a opressão das mulheres?”. Talvez a sua ambição teórica universalista (dar conta de toda a história de humanidade) tenha sido demais, e o debate de repente desapareceu. Contudo, registramos o valor político de seu legado na luta feminista e permanência do questionamento radical que lhe dava forma.

2) A Segunda Fase é caracterizada de “visibilização” pelo aumento, durante os anos 70-80, do número de pesquisas sobre a situação das mulheres. Um maior aprofundamento conceitual decorre do incremento na pesquisa empírica de cortes mais limitados e mais profundos. O que foi tornado “visível” na situação das mulheres variou de país a país e de cultura à cultura.

a) Trabalho e gênero. A noção de trabalho é expandida a fim de incluir, não apenas o trabalho pago. Fizeram, assim, com que o trabalho doméstico se tornasse visível. A noção também dava conta de tornar “visível” a relação entre as duas esferas, trabalho pago e trabalho não pago, que a organização do trabalho doméstico é precondição do trabalho pago e vice-versa. Evidenciaram assim que ambas estão baseadas em gênero como são constitutivas das relações de gênero. O estudos incluíam, ainda, a questão de gênero no âmbito do trabalho pago: condições diferenciadas de trabalho, desigualdades salariais, revelando a hierarquia implícita baseada em gênero na organização “racional” do trabalho.

b) Sexualidade e gênero. A questão era a relação sexual entre homens e mulheres. As noções de dominação, poder e subordinação eram utilizadas para tornar “visível” os atentados sexuais contra a mulher. Elabora-se a noção de violência sexual, que compreende o estupro, o incesto, a prostituição, a pornografia, o assédio e atentados sexuais. A violência sexual era vista como correlata da dominação de gênero.

3) A fase da Reflexibilidade. A terceira fase corresponde ao momento em que, tendo desenvolvia a pesquisa feminista, é hora de avaliar, de modo compreensivo, o entendimento que se tem construído a cerca da condição da mulher. Representa, grosso modo, a uma aproximação pós-estruturalista.

a) Debatendo a abordagem. Criticam a abordagem centrada exclusivamente na mulher para entender gênero. É preciso recorrer a uma “perspectiva relacional”, concebendo gênero, não como uma entidade separada ou estática, mas como resultado da relação entre gêneros. Desse modo, a situação da mulher passa a ser compreendida como resultante dessa relação. O que torna relevante empregar o aparato teórico- conceitual para entender o outro lado dessa relação – ainda muito pouco problematizado – o homem.

b) Problematizando as diferenças biológicas. A noção de gênero, nas ciências sociais, tem, com freqüência, suprimidas as questões relativas às diferenças biológicas entre homens e mulheres. Em parte, porque nas ciências sociais os seres humanos são vistos como entidades essencialmente culturais, como tais modificáveis; e, em parte, porque geralmente o aspecto biológico tem sido utilizado (e ainda o é) para legitimar a opressão sobre as mulheres. Trata-se de resgatar as implicações dessas diferenças (principalmente no que diz respeito à capacidade de gestação e amamentação), com plena consciência das implicações metodológicas e práticas de sua abordagem: insistir que essas diferenças biológicas não geram necessariamente desigualdades de gênero, que dependem do modo como são valorizadas conforme é organizada de cada sociedade. Desse modo, o que se pode dizer é que considerar ou não a dimensão biológica das diferenças de gênero trazem ambos dilemas que é preciso sempre levar em conta.

c) Diferenças entre as mulheres. É preciso esclarecer não apenas as diferenças entre gêneros, mas, outrossim, as diferenças no interior de um mesmo gênero: raça, sexualidade, classe, religião, etc. No entanto, corre-se o risco, ao concentrar exaustivamente em outros aspectos determinados na vida da mulher, de tornar questionável o valor explicativo próprio da noção de gênero. Não obstante, a abordagem feminista compartilha o entendimento de que as mulheres são diferentes dos homens, mas também entre si.

d) Gênero como variável e como perspectiva. A busca pelo gênero como variável independente impôs dificuldades metodológicas complicadas, levando a seu abandono. Isso porque o esforço em isolar seus efeitos implicaria precisamente na eliminação do contexto social constitutivo e constituinte dos gêneros: comparar homens e mulheres com a mesma base cultural, de classe, etc, para aí encontrar o determinante último (puro) do gênero levaria a desconsiderar o contexto definidor das diferenças de gênero. Ao contrário, considerar o gênero como perspectiva é uma abordagem que leva a considerar o mundo como fundamentalmente estruturado e estruturante dos gêneros, problematizando áreas que normalmente são consideradas neutras (ex. ciência, direito e etc.).

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